Caso Ultrafarma: o que é crédito de ICMS e como a reforma tributária pode ajudar a evitar corrupção


Dono da Ultrafarma é preso em operação em São Paulo
O dono da Ultrafarma, Sidney Oliveira, e o diretor estatutário da Fast Shop, Mario Otávio Gomes, foram presos nesta semana após o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) revelar um esquema bilionário de fraudes envolvendo créditos de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
Segundo as investigações, Artur Gomes da Silva Neto, auditor fiscal de alto escalão da Secretaria da Fazenda de São Paulo (Sefaz-SP), atuava como o “cérebro” do esquema, que movimentou cerca de R$ 1 bilhão em propinas desde 2021.
Silva Neto é apontado pelo MP-SP como o responsável por manipular processos administrativos e facilitar o pagamento de créditos de ICMS para a Ultrafarma e a Fast Shop. Ele também foi preso.
Mas como funcionam os créditos de ICMS? E como a reforma tributária, que passa a vigorar integralmente em 2033, pode ajudar a coibir esse tipo de fraude?
O g1 conversou com especialistas para entender. Veja nos tópicos abaixo:
O que são os créditos de ICMS
Determinados setores podem acumular mais crédito
Como funciona a devolução dos valores
Morosidade e burocracia são principais desafios
De que maneira a reforma tributária pode ajudar a coibir fraudes
Como funcionava o esquema envolvendo Ultrafarma e Fast Shop
O que dizem as empresas envolvidas e a Sefaz-SP
O empresário Sidney Oliveira, dono da Ultrafarma, em imagem de 03/10/2013.
José Patrício/Estadão Conteúdo
O que são os créditos de ICMS
O crédito de ICMS é gerado quando uma empresa adquire produtos, mercadorias ou serviços ligados à sua atividade principal e paga o imposto nessas operações — por exemplo, uma fábrica de calçados que compra couro para confeccionar o produto final.
Esse imposto pago na aquisição da matéria-prima gera um crédito que pode ser usado para descontar o tributo devido pela empresa ao Estado na venda dos produtos.
🔎 Esse mecanismo é chamado de não cumulatividade. Na prática, significa que o ICMS pago na compra de insumos pode ser abatido do ICMS devido nas vendas. Se o imposto das vendas for maior que o crédito das compras, a empresa paga apenas a diferença ao Estado.
“Em tudo que eu adquiro para realizar minha atividade, e que tem relação com ela, eu posso tomar [o ICMS já pago] como crédito”, explica Fabio Florentino, sócio da área tributária do Demarest.
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Determinados setores podem acumular mais crédito
Em algumas situações, as empresas acumulam mais créditos do que débitos, destaca Marcelo Moreno da Silveira, advogado do Juri Consultoria Empresarial.
“Dependendo do segmento ou da atividade da empresa, pode haver crédito na entrada superior ao débito apurado na saída. O saldo é transferido para uso posterior e se acumula mês a mês nos livros fiscais, gerando o saldo credor de ICMS”, diz.
Isso pode acontecer, segundo tributaristas ouvidos pelo g1, em casos de empresas que atuam com:
Exportações. As vendas para o exterior, por serem isentas do imposto, não geram débito de ICMS. Na prática, a empresa obtém crédito na entrada (ao pagar ICMS na compra de insumos), mas não o utiliza na saída (na venda), resultando no acúmulo desse crédito.
Diferença de alíquotas. Isso também ocorre quando a alíquota de ICMS (tributo estadual) na entrada é maior que a aplicada na saída para outros estados. Um exemplo é uma empresa que compra um produto em São Paulo, com alíquota de 18%, e o vende para outro estado, onde a alíquota é menor, de 7%. Essa diferença gera acúmulo de crédito.
Substituição Tributária (ICMS-ST). Nessa modalidade, o imposto é recolhido antecipadamente, geralmente pelo fabricante ou importador, para cobrir todas as operações subsequentes até a venda ao consumidor final. Sem débito de ICMS a compensar, o crédito se acumula.
Fabio Florentino, do Demarest, afirma que o acúmulo de créditos de ICMS acontece com frequência no varejo — como os casos da Ultrafarma e da Fast Shop — por conta, principalmente, do processo de substituição tributária.
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Como funciona a devolução dos valores
Para recuperar os créditos acumulados mensalmente, as empresas precisam formalizar requerimentos à Secretaria da Fazenda do respectivo estado.
Marcelo Silveira, do Juri Consultoria Empresarial, explica que o processo é o seguinte:
Os contribuintes apuram o crédito acumulado de ICMS ao enviar arquivos digitais que comprovem suas operações.
A partir desse envio, inicia-se o processo administrativo.
“Esse processo é distribuído à Delegacia Regional Tributária, para início da fiscalização das operações da empresa no período. Após a validação das informações, o pedido é deferido pela Fazenda, que irá homologar o montante do crédito a que o contribuinte tem direito”, explica Silveira.
Segundo informações do MP-SP, a fraude do auditor fiscal estadual no caso Ultrafarma e Fast Shop teria ocorrido, principalmente, na etapa do processo administrativo.
🔎 As investigações apontam que o auditor coletava a documentação, acelerava a aprovação dos pedidos para esse ressarcimento e garantia que eles não fossem revisados internamente. Em alguns casos, os valores liberados eram maiores que os devidos, e o prazo para pagamento, reduzido.
Fabio Florentino, do Demarest, explica que as principais formas de uso ou devolução do crédito são:
Recebimento direto do crédito em dinheiro pelo Fisco;
Autorização para transferência do crédito para outro contribuinte do mesmo estado, que pode utilizá-lo para abater seus próprios débitos de ICMS.
Edson Hideki, sócio da Revio, diz que essa transferência pode ser feita, por exemplo, a fornecedores ou clientes, para abater o valor de novas compras. Ele acrescenta que o pedido de ressarcimento em dinheiro é mais burocrático.
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Morosidade e burocracia são principais desafios
Morvan Meirelles Costa Junior, advogado e sócio do escritório Meirelles Costa Advogados, ressalta que o aproveitamento de créditos acumulados de ICMS é complexo, enfrenta morosidade na análise e exige extensa documentação.
“A complexidade pode, de fato, abrir margem para irregularidades e práticas de corrupção na liberação desses valores, tendo em vista, inclusive, o tempo que esses processos chegam a levar até a efetiva homologação do crédito de ICMS pleiteado — de até 2 anos”, diz.
Segundo os tributaristas ouvidos pelo g1, essa lentidão faz com que muitos contribuintes, especialmente em São Paulo, não consigam utilizar os valores acumulados. O total pendente de utilização ou transferência pode chegar, hoje, a R$ 10 bilhões, estimam.
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De que maneira a reforma tributária pode ajudar a coibir fraudes
Os especialistas veem a reforma tributária como uma ferramenta promissora para reduzir a ocorrência de fraudes e agilizar a recuperação de créditos. A nova legislação foi promulgada pelo Congresso Nacional em 2023 e teve regulamentação aprovada em janeiro deste ano.
O texto estabelece, entre outros pontos, que cinco tributos serão substituídos por dois Impostos sobre Valor Agregado (IVAs) — um gerenciado pela União e outro com gestão compartilhada entre estados e municípios:
Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS): com gestão federal, vai unificar IPI, PIS e Cofins;
Imposto sobre Bens e Serviços (IBS): com gestão compartilhada estados e municípios, unificará ICMS (estadual) e ISS (municipal).
O ICMS será extinto definitivamente em 2033, quando se encerra o período de transição da reforma tributária e as novas regras passam a valer integralmente.
Fabio Florentino, do Demarest, cita ao menos três pontos da reforma tributária que poderão ajudar a coibir ou desincentivar fraudes.
Unificação e centralização da apuração: A extinção do ICMS (imposto estadual) e a criação do IBS irão unificar a legislação tributária em todo o país. Isso evitará diferenças de alíquotas entre estados e permitirá um controle mais eficiente sobre a geração de créditos tributários.
Prazos expressos para devolução: A Lei Complementar 214/2025, que regulamenta a reforma, estabelece prazos que variam de 60 a 180 dias para a devolução dos créditos. Atualmente, não há um prazo legal definido, o que contribui para a morosidade.
Comitê Gestor do IBS: O dinheiro dos impostos ficará em um comitê gestor, um órgão à parte das Secretarias da Fazenda dos estados. Isso pode desvincular a devolução dos créditos da necessidade de caixa dos estados, agilizando o processo.
Além disso, a reforma prevê automatização dos processos e o mecanismo de “split payment” (pagamento dividido), em que o imposto é retido automaticamente na transação e direcionado ao Fisco.
Edson Hideki, da Revio, destaca que isso “elimina a possibilidade de liberar crédito sem pagamento real”.
Morvan Meirelles Costa Junior, do Meirelles Costa Advogados, destaca que a criação da CBS e do IBS trará uma revolução na recuperação de créditos fiscais ao adotar a “não cumulatividade plena”.
Isso permitirá às empresas aproveitar créditos sobre “praticamente todos os bens e serviços utilizados em suas atividades”, incluindo os de uso indireto, o que amplia significativamente a base de créditos recuperáveis comparado ao sistema atual de ICMS, diz.
Fabio Florentino, do Demarest, lembra que atualmente existem muitas discussões sobre quais produtos geram crédito dentro dos processos de uma empresa. Segundo ele, a nova legislação deve reduzir, inclusive, as controvérsias jurídicas sobre o tema.
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Como funcionava o esquema envolvendo Ultrafarma e Fast Shop
Segundo investigação, um auditor fiscal facilitava o processo de ressarcimento de créditos para favorecer empresas em troca de propinas de mais de R$ 1 bilhão.
Arte/g1
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O que dizem as empresas envolvidas e a Sefaz-SP
No dia da operação do MP-SP, Sidney Oliveira, dono da Ultrafarma, informou que celebrou há alguns meses um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) com o Ministério Público, no qual reconheceu irregularidades tributárias, e foi homologado pela Justiça.
Disse também que os valores devidos foram parcelados e estão sendo pagos. Sobre a prisão, seu advogado afirmou que iria analisar os motivos que levaram à decisão judicial.
No mesmo dia, a Fast Shop afirmou que não tinha tido acesso ao conteúdo da investigação e declarou que está colaborando com as autoridades para esclarecer os fatos.
A Sefaz-SP disse que está à disposição das autoridades e que irá colaborar com os desdobramentos da investigação por meio de sua Corregedoria da Fiscalização Tributária (Corfisp). Afirmou também que instaurou processo administrativo para apurar a conduta do auditor fiscal.
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Quem é Sidney Oliveira, fundador da Ultrafarma preso nesta terça (12) em SP
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