O ‘álbum novo’ de cantora folk que nem ela conhecia – criado com inteligência artificial


Emily Portman diz que a versão criada por inteligência artificial de sua música é “assustadora”
Getty Images via BBC
No mês passado, a premiada cantora britânica Emily Portman recebeu uma mensagem de um fã elogiando seu novo álbum e dizendo: “A música folk inglesa está em boas mãos”.
Isso normalmente seria um elogio, mas a artista de Sheffield ficou intrigada.
Então, ela seguiu um link postado pelo fã e foi levada ao que parecia ser seu mais recente lançamento.
“Mas eu não reconheci, porque eu não tinha lançado um novo álbum”, diz Portman.
“Descobri um álbum meu novo em diversos lugares – no Spotify, no iTunes e em todas as plataformas online.”
“Chamava-se Orca, e era uma música evidentemente gerada por inteligência artificial, mas que, acredito eu, havia sido bem treinada usando minhas músicas reais.”
As 10 faixas tinham nomes como Sprig of Thyme e Silent Hearth – que eram “incrivelmente próximas” de títulos que ela poderia ter criado. Foi algo que Portman, vencedora do prêmio BBC Folk Award em 2013, achou “muito assustador”.
Quando ela clicou para ouvir, a voz – supostamente dela – estava um pouco estranha, mas cantava “em um estilo folk provavelmente o mais próximo possível do meu que a IA consegue produzir”, diz ela. A instrumentação das músicas também era assustadoramente semelhante.
O álbum Orca foi lançado sob o nome de Emily Portman em uma série de plataformas digitais, incluindo o YouTube
BBC
A música gerada por IA já é abundante na internet hoje. Mas ela é frequentemente lançada sob nomes fictícios ou imitando grandes estrelas — e sem que apareça em suas páginas oficiais de streaming.
Agora existe uma tendência crescente de artistas consagrados (mas não super estrelas) virando alvos de conteúdo falso que aparece repentinamente em suas páginas no Spotify e outros serviços de streaming. Até mesmo músicos já falecidos tiveram “novos” materiais gerados por IA adicionados aos seus catálogos.
Portman não sabe quem publicou o álbum usando seu nome ou o porquê disso. Ela foi falsamente creditada no disco como artista, compositora e detentora dos direitos autorais. O produtor listado nos créditos é Freddie Howells — mas ela afirma que esse nome não significa nada para ela e que não há nenhum vestígio online de um produtor ou músico com esse nome.
Quanto à música em si, embora tenha sido bem feita o suficiente para convencer alguns fãs, a falta de algum elemento humano real na criação faz o álbum soar “vazio e perfeito demais”, diz ela.
“Eu nunca vou conseguir cantar sendo tão perfeitamente afinada. E não é esse o ponto. Eu nem quero. Eu sou humana.”
Alguns dias depois, outro álbum apareceu nas páginas de streaming de Portman. Desta vez, era possível perceber que houve bem menos esforço para imitá-la. Eram “20 faixas de baboseiras instrumentais”, diz ela. “Só AI slop [termo em inglês para designar conteúdo de baixa qualidade criado por inteligência artificial].”
Ela entrou com uma processo na Justiça por direitos autorais para que os álbuns sejam retirados do ar e disse que o episódio redobrou sua “crença na importância da criatividade real e em como ela comove as pessoas”.
“Espero que a música da IA ​​não tenha feito isso com as pessoas”, continua ela. “Embora eu tenha recebido um e-mail de alguém perguntando: ‘Cadê o Orca? Estou escutando o disco repetidamente’. Então houve pessoas que foram enganadas pelo disco.”
Josh Kaufman diz que a música produzida por IA imitando seu estilo soa como “uma demo com teclado Casio e letras em inglês macarrônico”
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Quem postou os álbuns online receberá royalties por ele. Mas nenhuma música do Orca teve mais de 2 mil reproduções no Spotify — portanto, a receita com o disco não deve ultrapassar US$ 6 (R$ 32) por faixa.
De acordo com a Luminate, empresa de análise da indústria musical, todos os dias é feito o upload de cerca de 99 mil músicas para serviços de streaming, geralmente por meio de dezenas de serviços de distribuição, que solicitam os dados do artista.
Se essas informações estiverem incorretas e uma música for listada erroneamente sob o nome de um artista já existente, cabe aos artistas ou à gravadora reclamar para removê-la.
Portman diz que algumas plataformas foram rápidas em remover o Orca de suas plataformas, mas o Spotify demorou três semanas para fazê-lo. E ela ainda não recuperou o controle de seu perfil de artista no Spotify.
Em um comunicado, o Spotify disse: “Esses álbuns foram adicionados incorretamente ao perfil errado de uma artista diferente que tem o mesmo nome e foram removidos após serem sinalizados”.
Portman questiona isso. Embora haja outra cantora com o mesmo nome que o seu no Spotify, os álbuns falsos não soavam como ela e não foram adicionados ao seu perfil desde então.
Ela diz que a experiência “angustiante” parece “o início de algo bastante distópico” — e também destaca a falta de proteção legal para os artistas.
Ela suspeita que artistas independentes estejam sendo alvos dessas ações porque nomes mais famosos costumam ter mais proteção e poder para remover lançamentos fraudulentos rapidamente.
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‘Assinatura da nossa alma’
Assim como Portman, o músico, produtor e compositor nova-iorquino Josh Kaufman, que tocou no álbum Folklore de Taylor Swift, foi alertado por seus ouvintes sobre material falso com seu nome.
“Eu comecei a receber mensagens de fãs e amigos sobre algumas músicas novas que eu teria acabado de lançar e sobre como elas eram uma grande mudança [de estilo]”, diz ele.
“Eu acho que a maioria das pessoas percebeu que se tratava de outra pessoa usando meu perfil de artista como forma de lançar uma música estranha, claramente gerada por computador.”
No caso de Kaufman, sua identidade foi usada para lançar uma faixa chamada Someone Who’s Love Me, que soava como “uma demo com teclado Casio e letras em inglês macarrônico”.
“Foi constrangedor e, depois, meio confuso”, diz. “Isso [música] é o que fazemos, certo? Isso é a assinatura da nossa alma, e que outra pessoa possa simplesmente ter acesso a isso…”
Ele é um dos diversos artistas de folk-rock e Americana que tiveram faixas falsas postadas usando seus nomes nas últimas semanas — aparentemente todas da mesma fonte.
Outros incluem o vocalista do Wilco, Jeff Tweedy, J Tillman (agora conhecido como Father John Misty), Sam Beam (também conhecido como Iron & Wine), Teddy Thompson e Jakob Dylan.
Todos os lançamentos usaram o mesmo estilo de arte com IA e foram creditados a três gravadoras, duas com nomes aparentemente indonésios. Muitos listaram o mesmo nome de um compositor — Zyan Maliq Mahardika.
Esse nome também foi creditado em outras músicas que imitam músicos cristãos e bandas de metalcore dos EUA.
O Spotify disse que alertou a distribuidora sobre o problema e removeu essas faixas, pois elas “violavam nossa política contra a personificação de outra pessoa ou marca”.
A empresa acrescentou que “removeria qualquer distribuidor que permitisse repetidamente esse tipo de conteúdo em nossa plataforma”.
O mesmo estilo de design foi usado para lançar músicas falsas sob o nome de diversos artistas
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Kaufman criou uma playlist com todas as faixas que conseguiu encontrar e deu a ela um nome depreciativo. “É mais divertido rir disso do que se sentir mal”, diz ele. “Mas é desconcertante que isso possa acontecer.”
E é estranho para ele — como músico e produtor que geralmente passa despercebido do grande público — ser alvo disso.
“Por que não procurar algum artista grande? Se você está tentando ganhar royalties de algum tipo”, questiona.
Ele não faz ideia de para quem esses royalties possam ter ido.
“Para ser sincero, nem sei quem é o inimigo”, diz ele. “É um computador? É uma pessoa sentada em algum lugar criando essa música só para atrapalhar alguém?”
Uma coisa é certa: ele quer que empresas como o Spotify sejam mais proativas na prevenção de músicas fraudulentas em suas plataformas.
Tatiana Cirisano, da empresa de análise de mídia e tecnologia Midia Research, afirma que a IA está “tornando mais fácil para os fraudadores” enganarem os ouvintes, que também são mais “passivos” nessa era dos algoritmos.
Ela acredita que pessoas mal-intencionadas podem estar se passando por artistas da vida real na esperança de que suas faixas fraudulentas “acumulem streams suficientes” — centenas de milhares — para lhes render um belo dinheiro.
“Eu acho que as falsificações de IA estão focadas em artistas menos conhecidos na esperança de que seus esquemas passem despercebidos, em vez de mirarem em uma super estrela que poderia imediatamente alertar o Spotify”, diz ela.
Mas os serviços de streaming e distribuidores estão “trabalhando duro” e melhorando seus sistemas de identificação, ela enfatiza, “ironicamente, também usando IA e aprendizado de máquina”.
“Acho que está claro para todos que cada parte interessada deve fazer a sua parte”, diz ela. “Mas é complicado.”
Música nova de artista morto
Quando uma nova música apareceu no mês passado na página de artista verificado do cantor country americano Blaze Foley, foi uma grande surpresa para Craig McDonald, dono da gravadora de Foley – principalmente porque Foley morreu em 1989.
A “baboseira de inteligência artificial”, como McDonald descreve, evidentemente não fazia parte do estilo “cantor e compositor texano de coração” de Foley.
“Blaze tinha talento para compor, mas, junto com esse talento, uma autenticidade completa”, diz ele. “Como costumam dizer, [ele tinha] três acordes e a verdade. E claramente não era isso.”
McDonald, que administra a Lost Art Records, está preocupado que imitações de IA possam prejudicar a credibilidade de artistas como Foley, especialmente para pessoas que não conhecem seu som.
Ethan Hawke (à esquerda) e Ben Dickey cantaram após a exibição de um filme biográfico sobre Blaze Foley no Texas em 2018
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O que Foley teria achado de tudo isso?
“Blaze talvez tivesse gostado, porque na foto que acompanhava a música, ele parecia bem mais magro, com uns 15 kg a menos, e ainda ganhou um corte de cabelo moderno”, ri McDonald.
“Mas ele também diria: ‘Quero aqueles 10% de cada centavo que o Spotify está arrecadando. Mandem para mim’.”
Considerando que a era do streaming já causou grandes perdas na renda de muitos artistas, Emily Portman diz que esse caso parece um “golpe muito baixo”.
Além de ter que lidar com um impostor de inteligência artificial, ela agora está gravando seu primeiro álbum solo (de verdade) em 10 anos — o que, ao contrário da IA, exige tempo, dinheiro e profunda criatividade pessoal. Ela diz que o disco custará pelo menos R$ 70 mil no total, para pagar as pessoas de verdade que tocam, produzem, lançam e promovem o disco.
Mas o resultado, ela se entusiasma, será algo genuíno e humano.
“Estou realmente ansiosa para trazer música de verdade ao mundo!”
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