
O programa nuclear do Irã tem sido uma das maiores dores de cabeça para a diplomacia americana nas últimas décadas. Paradoxalmente, esse programa teve origem em uma iniciativa de Washington. Presidente dos EUA, Donald Trump, diz que ‘sem dúvida nenhuma’ voltaria a atacar o Irã caso o país continue enriquecendo urânio, durante coletiva na Casa Branca em 27 de junho de 2025.
REUTERS/Ken Cedeno
Tem sido uma preocupação central na agenda geopolítica global nas últimas duas décadas. O programa nuclear do Irã tem sido uma das questões que mais exigem esforços diplomáticos desde que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) descobriu, em 2003, que Teerã vinha desenvolvendo um programa secreto há 18 anos, incluindo a existência de diversas usinas nucleares de grande porte e sofisticadas.
Essa revelação, que implicava uma violação das obrigações do Irã como signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, imediatamente acionou a máquina diplomática global, que rapidamente emitiu condenações, sanções e outras medidas de pressão envolvendo não apenas potências ocidentais, mas também Rússia e China, parceiros tradicionais de Teerã.
Embora o governo do então presidente Mohamed Khatami alegasse que as atividades nucleares tinham fins pacíficos, os Estados Unidos interpretaram essas descobertas como a confirmação de suas suspeitas de que Teerã buscava adquirir armas nucleares.
O programa nuclear iraniano tem sido uma questão central durante os mandatos de George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden. Com abordagens muito distintas, todos esses ex-presidentes buscaram deter o programa por medo de que o Irã desenvolvesse armas nucleares, uma possibilidade que alteraria o equilíbrio de poder no Oriente Médio e, segundo muitos especialistas, poderia incentivar a proliferação na região.
Bush incluiu o Irã em seu famoso discurso sobre o chamado “eixo do mal” em 2002 e, posteriormente, pressionou pela adoção de um regime abrangente de sanções internacionais contra o Irã.
Obama passou dois anos de sua presidência negociando com Teerã — juntamente com os governos do Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha — o Plano de Ação Integral Conjunto (JCPOA, nas siglas em inglês), assinado em 2015, que permitiu limites e supervisão internacional do programa nuclear iraniano em troca do levantamento das sanções contra Teerã.
Durante seu primeiro governo, Donald Trump retirou os EUA deste acordo e impôs novas sanções unilaterais. Em resposta, Teerã passou a ignorar as limitações impostas pelo JCPOA, acelerando sua taxa de enriquecimento de urânio para 60%, bem abaixo dos 4,5% normalmente necessários para gerar eletricidade e muito mais próximo dos 90% necessários para fabricar uma bomba.
Após o presidente democrata Joe Biden tentar, sem sucesso, reativar o JCPOA, Trump, agora em seu segundo mandato, adotou uma postura mais drástica.
Na semana passada, os EUA se juntaram à campanha militar de Israel contra o programa nuclear iraniano e bombardearam usinas nucleares iranianas, com o objetivo de torná-las inoperantes.
No momento da redação deste texto, não está claro se esse objetivo foi alcançado, visto que avaliações independentes dos danos causados pelos ataques não estão disponíveis.
Paradoxalmente, todas essas dores de cabeça tiveram suas origens em Washington, já que o programa nuclear iraniano foi lançado graças a uma iniciativa americana na década de 1950.
Tudo começou com um discurso do presidente Dwight Eisenhower.
“Átomos para a Paz”
Em 8 de dezembro de 1953, perante a Assembleia Geral da ONU, Eisenhower falou sobre a ameaça representada pela tecnologia nuclear usada para fins militares, que havia deixado de ser monopólio dos EUA por vários anos, e os riscos de proliferação à medida que mais países aprendessem a produzir bombas atômicas.
O presidente afirmou que era necessário ir além da busca pela redução dessa ameaça e sugeriu colocar essa tecnologia a serviço da humanidade.
“Não basta tirar essa arma dos soldados. Devemos colocá-la nas mãos daqueles que sabem como despojá-la de seu revestimento militar e adaptá-la às artes da paz”, disse ele.
Em seguida, propôs a criação de uma agência de energia atômica, sob a égide da ONU, encarregada de projetar maneiras para que o material nuclear “serve aos propósitos pacíficos da humanidade” e para que a energia atômica fosse aplicada a diversas necessidades em áreas como medicina e agricultura. “Um objetivo especial seria fornecer eletricidade abundante às regiões do mundo com escassez de energia”, observou.
A ideia era que potências capazes de produzir material nuclear o forneceriam à agência da ONU, que o manteria seguro e o colocaria nas mãos de pesquisadores que investigariam os usos pacíficos dessa energia.
O discurso de Eisenhower lançou as sementes para a criação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), mas também daria origem a uma iniciativa conhecida como Átomos para a Paz. Por meio dela, os Estados Unidos forneceriam educação e tecnologia aos países em desenvolvimento para auxiliá-los no uso pacífico da energia atômica.
Tirando o gênio nuclear da lâmpada
Menos de um ano após o discurso da ONU, os Estados Unidos alteraram a Lei de Energia Atômica para permitir a exportação de tecnologia e materiais nucleares para outros países, desde que eles concordassem em não usar para o desenvolvimento de armas.
Em março de 1955, o governo Eisenhower deu um passo adiante e autorizou a Comissão de Energia Atômica dos EUA a fornecer aos estados do “mundo livre” quantidades limitadas de material físsil, bem como assistência na construção de reatores nucleares.
“Essas exportações visavam manter a liderança global dos EUA, reduzir a influência soviética e garantir o acesso a suprimentos estrangeiros de urânio e tório”, escreveu Peter R. Lavoy, ex-diretor de Política de Contraproliferação do Pentágono, em um artigo publicado pela Associação de Controle de Armas.
A Índia foi o primeiro país a receber assistência nuclear de Washington. Outros beneficiários incluíram África do Sul, Israel, Turquia, Paquistão, Portugal, Grécia, Espanha, Argentina, Brasil e Irã.
Um reator para Teerã
Em 5 de março de 1957, os Estados Unidos assinaram um acordo de cooperação com o Irã, então governado pelo Xá Mohamed Reza Pahlavi, para o uso civil da energia atômica. Esse acordo, sob a égide da iniciativa Átomos pela Paz, lançou as bases para o lançamento do programa nuclear iraniano.
Para Washington, o Irã representava um atrativo adicional no contexto da Guerra Fria.
“De acordo com documentos arquivados [da época], um Irã não alinhado era visto como a pedra angular de uma estratégia de dissuasão contra a União Soviética, e os Átomos pela Paz serviriam para solidificar a lealdade do Irã ao Ocidente”, observou Jonah Glick-Unterman em uma análise de 2018 publicada pelo Wilson Center, um think tank sediado em Washington.
Em 1967, os Estados Unidos forneceram a Teerã um reator de pesquisa nuclear de 5 megawatts, bem como uma certa quantidade de urânio altamente enriquecido para operá-lo.
Três anos depois, o Irã ratificou o Tratado de Não Proliferação Nuclear, que se comprometia a não buscar possuir ou desenvolver armas nucleares.
Esse objetivo, no entanto, não havia sido completamente abandonado pelo Xá.
“Na época, o Xá tinha a ideia de que, se o Irã fosse forte o suficiente e pudesse defender nossos interesses na região, não queria armas atômicas. Mas ele me disse que, se isso mudasse, ‘teríamos que nos tornar nucleares’. Ele tinha isso em mente”, relatou Akbar Etemad, considerado o pai do programa nuclear iraniano, em uma entrevista de 2013 à BBC.
Etemad foi presidente da Organização de Energia Atômica do Irã, criada em 1974, e liderou o desenvolvimento inicial do programa nuclear de seu país.
Naquele ano, Reza Pahlavi anunciou planos para construir 23 usinas atômicas com capacidade para gerar cerca de 23.000 megawatts nas duas décadas seguintes. Ele também queria desenvolver o ciclo completo de produção de combustível nuclear.
Mas havia um grande obstáculo: o Irã não tinha os especialistas qualificados necessários para avançar nesse caminho.
“Como o Irã carecia de um grande número de profissionais treinados em engenharia nuclear e física, o reator de Teerã permaneceu improdutivo por quase uma década, devido à falta de mão de obra adequada para operá-lo”, observou Ariana Rowberry em um artigo publicado pela Brookings Institution, um think tank sediado em Washington.
A assistência dos EUA também seria fundamental para superar esse obstáculo.
Em julho de 1974, as autoridades iranianas propuseram ao prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) a criação de um programa de mestrado para alunos selecionados pela Organização de Energia Atômica do Irã, que treinaria as primeiras gerações de engenheiros nucleares iranianos.
Esse programa educacional, cujos dois primeiros anos foram financiados pelo Irã com aproximadamente 1,3 milhão de dólares (8,5 milhões hoje), gerou protestos de professores e alunos do MIT, que acusaram o Xá de violações de direitos humanos e temiam que isso contribuísse para a proliferação nuclear.
De qualquer forma, esse acordo educacional e a colaboração nuclear entre Washington e Teerã desapareceram logo depois, com o triunfo da Revolução Iraniana em 1979. Suas consequências, no entanto, perdurariam. “Ninguém no MIT imaginava que os programas que estavam elaborando para o Xá logo cairiam nas mãos de revolucionários islâmicos. Ninguém acreditaria quantos estudantes e professores iranianos que eles estavam treinando apoiariam a revolução”, escreveram os historiadores da tecnologia Stuart W. Leslie e Robert Kargon em um artigo.
A Universidade de Tecnologia de Aryamehr (AMUT), que havia sido modelada no MIT, acabou se tornando um importante centro de atividade revolucionária estudantil.
Inicialmente, o novo regime liderado pelo aiatolá Ruhollah Khomeini rejeitou os projetos nucleares do Xá e, de fato, muitos dos professores formados nessa área fugiram do país.
Mohammed Homayounvash, professor de Relações Internacionais na Universidade Internacional da Flórida, explica que, após a revolução de 1979, os iranianos adotaram uma postura extremamente antinuclear.
“Eles achavam que esse projeto era um elefante branco para o Xá. Na verdade, suspenderam o programa nuclear e o desmantelaram quase completamente”, conta ele à BBC Mundo.
“Houve um hiato de cerca de cinco a seis anos, durante o qual os iranianos desprezaram completamente a energia nuclear. Eles achavam que era um desperdício de seus próprios recursos, já que era boa apenas para gerar eletricidade e o Irã possuía abundantes recursos petrolíferos”, acrescenta.
No entanto, a revolução iraniana mais tarde perceberia o valor da tecnologia nuclear e não apenas começaria a tentar trazer de volta muitos dos especialistas que haviam partido, mas também lançaria seu próprio programa atômico secreto.
Consequências inesperadas
Mas quanta influência o Atoms for Peace realmente teve no desenvolvimento de armas nucleares em outros países e no atual programa nuclear do Irã?
De acordo com Homayounvash, por trás dessa iniciativa estava a preocupação de Eisenhower com as implicações do uso da tecnologia nuclear no campo bélico.
“Portanto, para evitar que mais países seguissem esse caminho, se acreditava na época que, caso tivessem acesso a um certo nível de tecnologia nuclear para fins civis, isso poderia ser mantido sob controle até certo ponto, com o estabelecimento de salvaguardas apropriadas”, observa.
Ele ressalta, por exemplo, que os Estados Unidos não vendiam, mas alugavam o urânio fornecido aos países como combustível para reatores, e apenas em quantidades de laboratório.
Foi assim que os Estados Unidos ajudaram a facilitar o estudo e a pesquisa sobre energia nuclear em cerca de trinta países ao redor do mundo.
Em retrospecto, no entanto, não há consenso entre os especialistas sobre até que ponto essa iniciativa contribuiu para a proliferação nuclear.
Homayounvash acredita que se pode argumentar que o programa Átomos pela Paz criou um ambiente no qual a transferência de tecnologia para energia nuclear para fins pacíficos se tornou possível e que, uma vez que os países aprenderam a usar essa tecnologia, puderam tomar medidas para avançar por diferentes caminhos.
No entanto, ele acredita que não é tão fácil argumentar que, se não fosse o programa Átomos para a Paz, alguns países não teriam chegado onde estão hoje em termos de desenvolvimento nuclear.
“A cadeia lógica [para chegar a essa conclusão] é um pouco mais complicada do que traçar uma linha reta, então eu não faria isso”, observa.
Outros especialistas, no entanto, acreditam que está claro que a iniciativa de Eisenhower, em última análise, favoreceu a proliferação.
“Há muita literatura nova destacando o quão perigoso isso era e como a iniciativa Átomos para a Paz estimulou e facilitou totalmente o desenvolvimento de um programa de armas nucleares”, disse John Krige, professor do Instituto de Tecnologia da Geórgia, à BBC Mundo.
“Pensar que uma linha clara poderia ser traçada entre Átomos para a Paz e Átomos para a Guerra não era apenas ingênuo, mas também se provou historicamente falso.
“Compartilhar tecnologia nuclear civil tem implicações importantes do ponto de vista das armas nucleares. Não há dúvida sobre isso”, acrescenta Krige, especialista no estudo da relação entre ciência e tecnologia e a política externa dos EUA.
Aqueles que compartilham essa visão frequentemente apontam para casos como o da Índia e do Paquistão, países que desenvolveram a bomba atômica e cujos primeiros cientistas nucleares foram treinados no âmbito da Iniciativa Átomos para a Paz.
Mas essa avaliação também deve incluir todos aqueles que, em algum momento, quiseram — mas, graças às salvaguardas estabelecidas — não foram autorizados a avançar para o desenvolvimento de armas nucleares.
“Há muitos outros casos em que o desvio de materiais nucleares científicos ou industriais para uso militar foi detectado e frustrado pelos instrumentos e conceitos que começaram com a Iniciativa Átomos para a Paz. Argentina, Brasil, Taiwan e Coreia do Sul são exemplos disso”, escreveu Peter R. Lavoy.
No caso do Irã, após os bombardeios israelenses e americanos, não está claro quanto de seu programa nuclear permanece, nem qual será seu futuro.
*Esta reportagem foi publicada originalmente em dezembro de 2021.