
Especialistas ouvidos pelo g1 explicam que, apesar do reforço na fiscalização, mortes no trânsito aumentaram com afrouxamento das punições. Segundo eles, código de trânsito flexibilizou as suspensões ao elevar limite de pontos e reduzir multa para uso de CNPJ. O Brasil nunca teve tantas multas de trânsito e, ao mesmo tempo, tão poucas Carteiras Nacionais de Habilitação (CNH) suspensas.
Em 2024, foram aplicadas 74,9 milhões de multas — a sexta alta consecutiva —, mas apenas 290 mil CNHs foram suspensas, o menor número desde 2013 (com exceção do ano atípico de 2020, quando as suspensões foram limitadas devido à pandemia de Covid).
Infográfico – Suspensões de CNH caem e multas sobem.
Arte/g1
Especialistas ouvidos pelo g1 atribuem essa mudança na relação entre multas e suspensões a alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), implementadas entre 2021 e 2022. O limite de pontos para suspender a CNH, por exemplo, subiu de 20 para 40. Também aumentou o prazo para a realização de exames toxicológicos e caiu o valor máximo da penalidade aplicada a empresas que não identificam o condutor infrator, conhecida como Multa NIC (leia mais detalhes abaixo).
“A multa virou só um número. Se a suspensão não acontece, o infrator não sente efeito real. A mudança no CTB, com mais pontos até a suspensão, somada à suspensão em baixa, faz a infração perder peso”, aponta a pesquisadora Danielle Hoppe, do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP).
Segundo especialistas, essa é uma das causas, junto com o aquecimento da economia que facilitou a compra de carros nos últimos anos, para o Brasil registrar cada vez mais mortes de trânsito (veja os números em infográfico mais abaixo).
“No momento em que você tem 20 pontos [para suspender a carteira] e passa para 40 pontos, obviamente a pessoa se sente mais à vontade para correr, cometer infrações de trânsito, principalmente velocidade, que é o grande vilão”, diz Antônio Clóvis Pinto Ferraz, professor do Departamento de Transporte e Trânsito da USP de São Carlos e ex-secretário de Trânsito nas cidades de Araraquara (SP) e São Carlos (SP).
Nesta reportagem, você vai ver:
O que mudou nas regras de trânsito?
Multas mais baratas para empresas
Raio-x das mortes no trânsito
Dinheiro de multa represado, investimento baixo
O que mudou nas leis de trânsito?
Agricultores familiares podem emitir CNH com gratuidade da taxa de recolhimento
Marley Lima/ SupCom ALE-RR
As novas regras para motoristas começaram a valer em 2021 e tornaram mais difícil a suspensão da carteira de habilitação, contribuindo para uma queda de mais de 20% nas punições a partir de 2022, segundo especialistas. Com o novo limite de 40 pontos, um motorista pode cometer várias infrações graves — como exceder em até 50% o limite de velocidade em rodovias — sem ter a CNH suspensa imediatamente.
Infográfico – Mudanças no Código Brasileiro de Trânsito entre 2021 e 2022
Artes/g1
Por exemplo, trafegar a 144 km/h em uma via onde o limite é 120 km/h acumula pontos, mas só leva à suspensão após reincidência. A suspensão automática nesse caso só ocorreria em situação extrema, como dirigir a 190 km/h, o que configura infração gravíssima.
Não à toa, as multas por excesso de velocidade continuam a representar mais de 40% das infrações registradas no país na última década, alta explicada também pela presença de radares nas rodovias.
“A gente consegue ter esse grande número de infrações porque a gente tem uma forma automática de detectar isso. Se nós dependêssemos do agente para verificar esse excesso de velocidade, nós não teríamos tantas notas assim”, explica Jorge Tiago Bastos, membro do Observatório Nacional de Segurança Viária.
Multa NIC: multas mais baratas para empresas
Infográfico mostra principais tipos de multa.
Arte/g1
Outro fator que mexeu com o índice de suspensões foi o aumento de multas em automóveis registrados em CNPJ. Após as mudanças no código de trânsito, o carro vinculado a uma empresa não acumula pontos se o condutor não for identificado.
Caminhão envolvido no acidente, na LMG-676, em Araçuaí
Foto: Polícia Militar Rodoviária
“A questão da multa por CNPJ é realmente um furo do sistema. Os pontos não são contabilizados para ninguém e algumas pessoas já notaram esse furo e estão se aproveitando para não acumular pontos [na carteira]. Se aplica quando o veículo está no nome de uma empresa e não de uma pessoa física”, explica Biderman.
Entre 1997 e 2021, as empresas tinham até 15 dias para identificar o condutor, ou a pontuação e o valor da multa seriam multiplicados. Agora, se a empresa não identificar o motorista, apenas o valor da multa é dobrado.
Mortes no trânsito caíram e depois subiram
Infográfico mostra dados sobre mortes, frota e CNHS suspensas.
Arte/g1
Antes do recente aumento nas mortes no trânsito, o Brasil viveu um período de queda. Entre 2013 e 2019, houve uma redução de 24% — cerca de 10 mil vidas poupadas —, atribuída, em parte, à crise econômica que reduziu o volume de viagens e, consequentemente, os acidentes. Em 2015, o PIB caiu 3,5%, marcando a maior retração desde 1996.
Além da economia, políticas públicas também contribuíram. “A gente viu aumento de ações e campanhas de valorização do pedestre, movimentos também de redução de limite de velocidade em cidades como São Paulo e Fortaleza. Também foi o período de elaboração do Pnatrans”, relembra a pesquisadora Danielle Hoppe.
Já para Jorge Tiago Bastos, a obrigatoriedade de airbags e freios ABS desde 2014 e o fortalecimento da Lei Seca foram decisivos: “A cada ano você tem mais veículos com esse dispositivo de segurança… e o amadurecimento da legislação brasileira sobre álcool e direção”.
Entre 2020 e 2021, entretanto, os acidentes voltaram a crescer, resultando em mil mortes a mais. Em 2024, foram registradas 6.153 mortes nas rodovias federais — alta de 9,6% em relação ao ano anterior, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT). O número de acidentes também subiu, chegando a 73.114, o maior desde 2015. Após anos de queda, os últimos quatro anos indicam uma estagnação na redução da violência viária.
O policial rodoviário federal Lucas Guimarães destaca o comportamento dos motoristas diante dos radares como fator de risco. “Hoje em dia, a maioria dos motoristas já sabe onde está o radar. Os aplicativos informam com antecedência, então a pessoa passa rápido, reduz só na hora e depois acelera de novo”, afirmou.
Para ele, essa prática reduz a eficácia da fiscalização, e por isso a PRF defende o uso de radares que medem a velocidade média no trajeto. Apesar de menos acidentes nas rodovias federais, a letalidade é maior: 0,08 morte por acidente, frente a 0,0176 nas estaduais, segundo a Secretaria Nacional de Trânsito.
Motociclistas são os mais atingidos
As motos estão entre os veículos que mais se envolvem em acidentes com mortes no trânsito no Brasil, representando 38,6% dos óbitos, segundo o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). De 2018 a 2023, o número de mortes de motociclistas subiu de 11.435 para 13.477, com destaque para o crescimento em estados como Piauí, Ceará, Alagoas e Amazonas.
Segundo Erivelton Pires, um dos coautores do estudo, esse aumento está ligado à rápida expansão da frota, impulsionada principalmente por entregadores de aplicativos após a pandemia. “É um modal mais vulnerável, operado por trabalhadores jovens, com pouca formação e pressão por produtividade”.
Acidente entre moto e carro mata casal na BR-262, em Martins Soares
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Além do trabalho com entrega, o uso individual da moto também cresceu durante a pandemia, com a fuga do transporte coletivo. “Aumentou o número de viagens por veículos individuais e proporcionalmente o número de motocicletas passou a ser mais usado”, explica Antônio Clóvis Pinto Ferraz.
Apesar do crescimento, 53,8% das motos estão em nome de pessoas sem habilitação adequada, dificultando a fiscalização. O curso obrigatório para transporte remunerado é amplamente negligenciado, segundo Gilberto Almeida dos Santos, presidente do SindimotoSP.
“Era uma doença em estágio inicial que virou um câncer generalizado”. Em resposta, o governo lançou a Semana Nacional de Prevenção a Sinistros com Motociclistas, com ações educativas a partir do dia 27 de julho. Porém, especialistas alertam que sem fiscalização e regulamentação, os efeitos são limitados: “Capacete é obrigatório, mas outros itens de proteção… nem sequer são exigidos”, critica Ciro Biderman, da Fundação Getúlio Vargas.
Dinheiro de multa represado, investimento baixo
O Atlas da Violência revela que os investimentos do Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito (Funset) têm sido sistematicamente represados. Em 2024, dos R$ 810 milhões arrecadados com multas, apenas R$ 54 milhões foram aplicados em segurança viária. Mais da metade do valor vai para a reserva do Orçamento da União, com o Ministério do Planejamento confirmando o contingenciamento.
Maria Alice Nascimento, do Ministério dos Transportes, atribui o bloqueio à burocracia federal e à falta de projetos estruturados nos municípios: “Para acessar os recursos, é difícil. E muitos municípios sequer têm equipe técnica capacitada para isso”.
Na contramão, Natal (RN) é um exemplo de como o uso consciente dos recursos de multas pode gerar resultados. Segundo a secretária municipal de Mobilidade Urbana, Jódia Melo, a Prefeitura tem reinvestido localmente os valores arrecadados com infrações em ações de educação no trânsito, fiscalização e modernização viária.
A capital do RN dobrou o número de radares e fotossensores entre 2021 e 2025 e promoveu 128 ações educativas em escolas só no último ano. Com isso, conseguiu reduzir em 18% o número de mortes no trânsito em 2024.
Para os especialistas, a falta de uma coordenação nacional reflete a dificuldade para enfrentar o problema de forma integrada. Atualmente, os dados sobre sinistros e mortes estão fragmentados entre órgãos estaduais, municipais e federais, dificultando diagnósticos consistentes e políticas públicas unificadas.
Por isso, cresce o apoio à criação de uma Agência Nacional de Segurança Viária, nos moldes da Anvisa ou da ANTT, com autonomia técnica e capacidade de articular ações entre os diferentes entes da federação.
A proposta prevê uma estrutura permanente, com orçamento próprio, dedicada à produção de dados qualificados, fiscalização estratégica, formulação de metas e monitoramento de resultados.
“Hoje, não existe uma entidade com esse papel sistêmico. Cada estado produz seus próprios indicadores, quando produz. Sem padronização, não há política pública de verdade”, resume o especialista Jorge Tiago Bastos.
“A criação da agência seria importante porque ela poderia fazer a gestão de todas essas ações que serão implementadas pelos estados e municípios também”, complementa Ferraz.
Novas leis do Código de Trânsito entram em vigor na segunda-feira