‘Um cara caiu em cima de mim no shopping e fiquei paraplégica’


‘Uma das primeiras coisas que eu queria saber era se ainda poderia ser médica’
Alicia Canter/BBC
Uma jovem mulher estava passeando em um shopping center em Londres quando um homem caiu em cima dela.
Ele tinha se jogado do terceiro andar e caiu em cima dessa moça, que ficou gravemente ferida e sofreu uma grande mudança em sua trajetória de vida.
Essa história fora do comum, que mostra como um evento totalmente inesperado pode transformar a vida de uma pessoa, é contada em um episódio da quarta temporada do podcast Que História!, da BBC News Brasil, que pode ser ouvido no YouTube, Spotify, Amazon Music, Apple Podcasts, Castbox, Deezer e outras plataformas de streaming.
“É como se nós fossemos duas partículas”, disse a jovem mulher ao contar sua história à BBC. “Eu estava seguindo um caminho, nós colidimos e de repente eu segui por uma jornada completamente diferente”.
O shopping Westfield no bairro de Stratford, no leste de Londres, é um dos maiores do Reino Unido
Mike Kemp/In Pictures via Getty Image
No ano de 2018, Grace Spence Green, de 22 anos, estava cursando o quarto ano do curso de Medicina na Inglaterra — e realizando um sonho da infância.
“Eu tinha esse livro de medicina quando tinha cerca de sete anos”, contou ela ao programa Life Changing, da BBC. “Era um daqueles em que você podia se diagnosticar e eu fiquei obcecada com isso, em ver como determinados sintomas levavam a determinados diagnósticos.”
Sua infância também foi marcada por atividades físicas, bastante presentes em sua vida.
“Acho que tive uma infância maravilhosa, com muitas aventuras. Minha família costumava ir à Turquia e à Austrália. Depois comecei a escalar quando tinha cerca de oito anos e adorei. Isso meio que se tornou uma grande parte da minha identidade. Eu participava de competições de escalada e cheguei a ser campeã juvenil sub-18 em 2012.”
“Era algo em que eu era muito boa e adorava, e também adorava treinar crianças a escalar, o que comecei a fazer quando tinha cerca de 17 anos.”
Seus pais eram acadêmicos que trabalhavam em universidades e que sempre apoiaram os planos de Grace para o futuro. Ela conseguiu entrar na faculdade de Medicina, mas o começo foi bem mais difícil do que ela esperava.
“No primeiro ano, tive muita dificuldade em lidar com a quantidade enorme de informações que eu recebia. E acabei falhando em todos os exames no primeiro ano. Foi terrível. Mas acabou servindo como um grande alerta.”
“Passei o verão inteiro estudando em vez de aproveitar as férias, para refazer os exames. E essa experiência me fez ter certeza de que isso era o que mais queria fazer no mundo, medicina, mais do que qualquer outra coisa. E depois desse primeiro ano, não tive muitos obstáculos pelas frente.”
‘Eu me lembro de estar deitada lá e dessas pessoas falando comigo. E elas dizendo que fui atingida ou algo assim. Me lembro de ter a sensação de que alguém estava perto de mim, deitado no chão’
@FaridQureshi_UK
‘Alguém caiu em cima de mim’
As coisas iam bem para Grace. Ela seguiu com os estudos, começou a namorar e, no quarto ano da faculdade, fez um estágio de dois meses em uma maternidade de Maidstone, cidade na região de Kent, no sul da Inglaterra. Um dia, quando tinha concluído o estágio, pegou carona para Londres com uma amiga.
“Estávamos voltando para Londres porque naquela noite eu ia ensinar algumas crianças a fazer escalada. E minha amiga queria fazer compras. Então paramos num shopping center. Ela ia fazer compras e eu ia pegar o metrô ali.
O shopping Westfield no bairro de Stratford é um dos maiores do Reino Unido. Foi inaugurado alguns meses antes da Olimpíada de 2012 em Londres e fica ao lado do Parque Olímpico, no leste da cidade.
“É enorme. E é meio brilhante, brilhante e branco. Essa é a minha principal lembrança disso. Estacionamos e descemos as escadas rolantes. Olhamos um mapa do shopping, por alguns segundos e seguimos andando pelo átrio principal no térreo. Aí eu me despedi de minha amiga, que subiu pela escada rolante.”
“Eu continuei andando com minha bagagem, por alguns segundos. E depois disso, eu só me lembro de, de repente, acordar.”
“Foi a experiência mais surreal e bizarra. É difícil descrever e sensação de acordar quando você pensava que já estava acordada. Especialmente num lugar que nem o shopping center enorme e moderno que é Westfield. Eu olhava para cima e tudo que pude ver era esse tipo de luz branca brilhante, era como se eu estivesse num sonho ou no céu ou algo assim.”
Grace estava andando no andar térreo do shopping quando um homem caiu em cima dela. Ele tinha pulado de uma sacada no terceiro andar, de uma altura de 30 metros. E Grace era a pessoa que estava andando no exato local em que o homem caiu.
“Apaguei por cerca de oito minutos. E quando acordei, meu primeiro pensamento foi que eu estava olhando para esse teto branco brilhante. E meu segundo pensamento foi: ‘Oh, meu Deus, eu não consigo sentir minhas pernas’.”
“Eu me lembro de gritar para alguns policiais e outras pessoas ali perto: ‘Não consigo sentir minhas pernas, não consigo sentir minhas pernas’. Eu estava desesperadamente tentando dizer a eles que algo estava errado, que algo estava realmente errado.”
“E nesse momento eu ainda não sabia o que tinha acontecido. Eu só pensava nessa falta de sensação nas pernas. Foi como se elas tivessem deixado de existir. Sabe quando você desconecta um cabo? Parece que eu tinha acabado de ser desconectada de metade do meu corpo.”
“Eu me lembro de estar deitada lá e dessas pessoas falando comigo. E elas dizendo que fui atingida ou algo assim. Me lembro de ter a sensação de que alguém estava perto de mim, deitado no chão. Havia outro grupo de pessoas conversando com outra pessoa no chão. E eu me lembro muito claramente de uma mulher dizendo à pessoa no chão ‘você caiu de uma grande altura’. Então eu acho que, logo no início, eu juntei as peças: alguém caiu em cima de mim.”
‘Esse é o caminho em que estou e esta é a minha realidade. Eu acho que se eu não estivesse ali naquele exato lugar naquele shopping e naquele momento, o homem poderia ter morrido, se estatelado no chão’
Grace Spence Green
‘É como se fossemos duas partículas que colidiram’
Grace Spence Green foi levada às pressas ao hospital. Sua medula espinhal tinha sido gravemente danificada. Apesar de uma cirurgia de oito horas na manhã seguinte para reparar suas vértebras, ela ficou paralisada logo abaixo do nível do peito. Se a fratura no pescoço tivesse sido um pouco mais grave, ela teria ficado paralisado do pescoço para baixo.
Algumas semanas depois ela foi transferida para o Royal National Orthopedic Hospital, especializado em lesões na coluna vertebral. Foi ali que ela foi informada de que dificilmente voltaria a andar.
“Essa foi uma época muito, muito intensa. É quando bateu a nova realidade. Tipo, ‘essa agora sou eu’, ‘fui ferida e a lesão é permanente’. E isso foi, muito, muito difícil.”
“Outra coisa que eu achei difícil foi que a maioria dos pacientes nesse hospital tinham sofrido lesões na coluna em quedas de andaimes ou acidentes de carro ou moto ou simplesmente quedas. E eu tinha essa história fora do comum que todo mundo queria ouvir e sobre a qual cada um tinha sua própria opinião. E isso foi muito difícil porque eu estou tentando descobrir o que eu sinto sobre tudo isso e todo mundo está me dizendo como eu deveria me sentir.”
“Na maioria das vezes, as pessoas diziam, ‘meu Deus, não acredito que ele fez isso com você’. Ou tipo, ‘eu teria matado ele se ele fizesse isso comigo’.”
“E eu não sentia raiva alguma. As pessoas acham isso muito difícil de entender.”
“Eu pensei muito nisso. Se eu tivesse alguma raiva dirigida a esse homem, ficaria me sentindo infeliz e amarga.”
“Eu não tenho raiva desse homem porque eu sinto como se nossas vidas tivessem colidido, figurativa e literalmente, e depois se separado. Eu posso passar meses sem sequer pensar nele. É como se nós fossemos duas partículas. Eu estava seguindo um caminho, nós colidimos e de repente eu segui por uma jornada completamente diferente.”
O homem que saltou do terceiro andar do shopping, Amsumana Sillah Trawallyi, foi condenado em um tribunal em Londres a quatro anos de prisão por lesão corporal grave.
REUTERS
Por que pulou?
Um ano após o incidente no shopping, o homem chamado Amsumana Sillah Trawallyi foi condenado em um tribunal em Londres a quatro anos de prisão por lesão corporal grave.
Ele tinha 25 anos no dia do crime. A corte ouviu que ele passara quatro horas e meia escolhendo um lugar para pular do terceiro andar do shopping.
Um relatório médico apresentado na corte disse que o réu tinha consumido maconha, e que isso pode ter contribuído para sintomas psicóticos que teriam tido efeito sobre seu estado mental.
Para o juiz do caso entretanto, “o réu não poderia ter dúvidas de que bem provavelmente cairia em cima de uma pessoa no térreo” e que, por isso, houve um “grau de premeditação no crime”.
O que não ficou claro é por que Trawally pulou. Ele quebrou a perna, mas poderia facilmente ter morrido na queda. Infelizmente, a única pessoa que sabe a resposta, o homem que pulou, não respondeu a essa pergunta.
‘Eu estou bem onde estou. Minha cadeira de rodas me faz sentir forte. Posso me locomover rapidamente dentro de hospitais. E nenhum paciente questionou minha competência por ser cadeirante’
Grace Spence Green
As dez semanas que Grace passou no hospital ortopédico foram de grande carga emocional e física. Ela teve que lidar com sua nova realidade e reaprender coisas básicas como ir ao banheiro, como se transferir da cadeira de rodas se movimentar de um jeito completamente diferente. E todo esse tempo, sua principal motivação foi saber que não teria de largar seu grande sonho.
“Uma das primeiras coisas que eu queria saber era se ainda poderia ser médica. E minha universidade foi excelente. E eles vieram me ver e disseram, ‘é claro, faremos tudo o que pudermos para apoiá-la’. E essa garantia me ajudou. Na verdade, não sei o que teria feito sem saber que voltaria para a faculdade de medicina no ano seguinte.”
Grace continuou os estudos e passou a ser médica residente em um hospital em Londres. A única médica cadeirante do hospital.
“Por um período, no começo, eu me sentia como se meu crachá, meu estetoscópio e meu jaleco fossem como uma armadura, porque eu entrava e era levada a sério, e as pessoas queriam minha ajuda de fato, o que, na maior parte dos aspectos da minha vida, não era o caso. Porque as pessoas estão constantemente perguntando se EU preciso de ajuda.”
“Eu estou bem onde estou. Minha cadeira de rodas me faz sentir forte. Posso me locomover rapidamente dentro de hospitais. E nenhum paciente questionou minha competência por ser cadeirante. O irônico é que conheço pessoas que andam mas tem sérios problemas nas costas e dores e têm uma espécie de deficiência invisível. Acho que o que tento comunicar às pessoas é que poder andar não é a coisa mais importante do mundo, não é a chave para a felicidade.”
“Esse é o caminho em que estou e esta é a minha realidade. Eu acho que se eu não estivesse ali naquele exato lugar naquele shopping e naquele momento, o homem poderia ter morrido, se estatelado no chão. Então, de certa forma, é como se eu estivesse lá para pegar sua queda, e acho que isso me conforta. Gosto de pensar assim.”
Grace Spence Green escreveu um livro, lançado em junho de 2025 no Reino Unido. Chama-se To Exist As I Am: A Doctor’s Notes on Recovery and Radical Acceptance (em tradução literal, “Para existir do jeito que sou: as anotações de uma médica sobre recuperação e aceitação radical”), e ele narra sua jornada de estudante idealista de medicina a paciente com lesão na coluna e ativista de direitos de pessoas com deficiência.
Médico que ficou paraplégico retoma cirurgias em hospital
Adicionar aos favoritos o Link permanente.