Comunidade centenária de palafitas sem saneamento vai abrigar estação de esgoto de áreas nobres na capital da COP 30


Obra deve levar esgoto de áreas nobres de Belém para comunidade de palafita sem saneamento
Moradores da Vila da Barca, uma das maiores comunidades de palafita da América Latina, localizada na periferia de Belém, reclamam da construção de uma estação elevatória para tratamento do esgoto de áreas nobres da capital. Em sua existência centenária, a Vila nunca possuiu sistema de saneamento.
“A gente pediu para ser várias coisas, mas não queríamos receber lama e muito menos esgoto”, diz a educadora de cidadania climática, moradora e líder comunitária Suane Barreirinhas.
Na cidade com dezenas de obras em andamento para a COP 30, a estação elevatória de esgoto na Vila da Barca não integra oficialmente a lista de investimentos com foco na Conferência das Nações Unidas, mas os trabalhos na área contam com placas de isolamento que mencionam o evento (veja mais abaixo).
🚧 A estação na Vila da Barca é essencial para outra obra da COP 30. Trata-se do sistema de esgoto da sub-bacia do Una. O projeto para despoluir canais da cidade custa R$ 25 milhões. Um dos canais é o da Avenida Visconde de Souza Franco, que também está em obras.
💧 O esgoto da Avenida Visconde de Souza Franco, entre os bairros centrais Reduto e Umarizal, vai passar por tubulações até a estação de tratamento do Una (ETE-Una). O trajeto tem cerca de 4 km. O caminho é subterrâneo, mas inclui a estação elevatória da Vila da Barca, que bombeará o fluxo de um ponto mais baixo para outro mais alto, para que o esgoto tenha fluxo e siga até a ETE-Una, conforme documentos do governo do Pará.
Os moradores da Vila da Barca alegam que a obra da estação elevatória não trará benefício à comunidade, temem o mau cheiro e possíveis vazamentos e dizem ainda que não foram previamente consultados. Por isso, procuraram o Ministério Público Federal (MPF), que acompanha as obras e analisa documentos.
➡️ Já segundo o governo, a obra “não representa qualquer risco sanitário ou ambiental à comunidade local”(leia mais abaixo).
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Entre os problemas enfrentados na Vila da Barca, o saneamento é uma das mais visíveis. O g1 foi à comunidade e constatou as condições em que os moradores vivem em relação ao saneamento básico, inexistente em grande parte da Vila, que divide espaço com muito lixo às margens da baía do Guajará.
Palafitas da Vila da Barca dividem espaço com muito lixo e animais.
Juliana Bessa / g1
O cronograma para implantar o sistema de esgoto da sub-bacia do UNA começou em agosto de 2024. Quase 1 ano depois, em julho de 2025, o governo do Pará assinou outro projeto, de R$ 7 milhões, para levar saneamento à comunidade da Vila da Barca por meio do contrato com a empresa Águas do Pará, do grupo Aegea, que deverá ampliar o abastecimento de água e implantar coletora de esgoto doméstico.
Essas obras de saneamento começaram na última semana de julho com a promessa de “ampliar o fornecimento de água potável e implantar sistemas de coleta e tratamento de esgoto sanitário nas moradias de alvenaria e palafitas da região”, segundo o governo.
Em paralelo à estação elevatória que atenderá áreas nobres, outra deve ser construída no local para atender só a comunidade, segundo a Aegea, mas ainda não começou a ser feita. A previsão é que esse novo sistema de água seja entregue até outubro deste ano e o esgotamento sanitário até abril de 2026.
Os líderes comunitários Power Martins, Inêz Medeiros, Suane Barreirinhas e Kelvin Gomes.
Juliana Bessa / g1
📍 A Vila da Barca está dentro do Telégrafo, bairro vizinho ao centro de Belém. A comunidade de palafitas foi formada no início do século XX, durante o processo de expansão da cidade que afastou parte da população mais pobre da região central.
Em 2007, 2010 e 2024 foram entregues moradias de alvenaria populares de projeto habitacional, que saiu do papel no começo dos anos 2000 e em 20 anos não foi concluído. De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), as obras das unidades remanescentes do projeto ocorrem dentro do cronograma previsto para esta etapa.
A área total da Vila condensa cerca de 5 mil moradores em aproximadamente um quilômetro quadrado de extensão, segundo o governo do Pará. O local divide o cenário com prédios altos e luxuosos, com supermercados gourmet e concessionárias de carros importados.
“100 anos depois isso volta a acontecer. É uma área estratégica (à beira do rio) que muito interessa ao empresariado e ao setor imobiliário. A expansão do bairro do Umarizal (vizinho ao Telégrafo, no centro de Belém) e o avanço no número de prédios ao nosso redor é reflexo disso”, explicou o historiador e morador Kelvin Gomes.
As lideranças comunitárias destacam o que consideram a exclusão desta população como exemplo vivo da gentrificação na Amazônia, um processo urbano que eleva preços, transforma bairros populares e força a saída dos moradores originais.
Para Suane Barreirinhas, a obra da estação elevatória faz parte desta dinâmica. A estrutura é uma instalação que vai bombear e levar o esgoto de regiões da capital, incluindo as centrais como a Doca, no Umarizal e área nobre, para a ETA do Una, passando pela estação elevatóra na Vila da Barca.
“O Estado diz que o Telégrafo será beneficiado. Sim, estamos dentro do bairro. Mas a nossa comunidade, que vai receber a obra, não é contemplada. […] Eles (o Estado) vão realizar a troca da tubulação de água e o saneamento, porém, não falaram nada sobre a estação”, detalhou Suane.
Ela afirma que em momento algum houve consulta prévia com a comunidade da Vila sobre a obra, fato que levantou outros questionamentos:
“Cadê o estudo de impacto ambiental? Cadê o estudo de medida de contenção? Se estourar, se acontecer algo, a gente faz o quê? A gente corre ou a gente fica? Nunca apresentaram isso para a gente”, pontuou a professora.
Local em que ocorre a obra da estação elevatória.
Juliana Bessa / g1
Em abril deste ano, a associação dos moradores pediu a atuação do Ministério Público Federal (MPF) para que o governo do Estado apresente as licenças ambientais necessárias e os estudos de viabilidade técnica e ambiental. Para a prefeitura, o MPF perguntou se a gestão acompanha ou fiscaliza a obra, e quais impactos são esperados no plano municipal de saneamento básico.
O Ministério Público Federal detalhou ao g1 que também questionou a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) e a Secretaria de Obras Públicas do Pará (Seop), a única que respondeu com cópias das licenças ambientais e dos estudos de viabilidade técnica e ambiental realizados e com informações sobre medidas de mitigação e compensação ambiental previstas e sobre audiências públicas realizadas, além de medidas de diálogo com a comunidade. Toda a documentação está sob análise do MPF.
O Governo do Pará, por meio da Seop, alega que foram realizadas duas reuniões com moradores “para apresentar o projeto e esclarecer dúvidas” à comunidade.
“Em ambas, os aspectos técnicos da obra foram detalhados, inclusive com participação de outros órgãos públicos”, disse em nota.
Ainda segundo o governo do Pará, a obra da estação elevatória é necessária para “o transporte e o tratamento adequado dos efluentes em áreas com limitações topográficas. A elevatória não produz efluente, não trata e não lança esgoto — apenas o transporta para o destino final adequado” e a escolha do local “obedece exclusivamente a critérios técnicos de engenharia sanitária, hidráulica e geografia urbana”.
Como a comunidade tem casas de palafitas e também algumas de alvenaria, em terra firma, o governo esclareceu que “não há previsão de interferência direta sobre as palafitas, que também não devem ser impactadas negativamente”.
A gestão estadual disse ainda que a implantação da estação elevatória segue rigorosamente as normas técnicas e ambientais vigentes, incluindo as diretrizes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e não representa qualquer risco sanitário ou ambiental à comunidade local.
Em abril, durante a audiência pública para discutir a obra da estação alocada na Vila, o diretor da Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), José Fernando de Mendonça Gomes Júnior, se recusou a tomar a água que abastece as famílias na área.
“Ele falou que a água da Cosanpa era a melhor que tem, que é bem trata tratada. E o Kelvin perguntou: ‘você bebe da água da Cosanpa?’. Foram pegar água da torneira e ele recusou beber. Essa era a água que os moradores, as crianças da Vila, bebem”, relembrou Suane. Sobre o episódio, a Cosanpa não se posicionou.
Moradores da Vila da Barca discutem execução de obra de esgotamento sanitário da Doca
Mais vulneráveis às mudanças climáticas
As movimentações governamentais para a COP 30 prometem transformar Belém em uma vitrine mundial da sustentabilidade, mas a carência nas condições básicas em áreas periféricas ou até mesmo em comunidades próximas ao centro da capital, como a Vila da Barca, revelam um cenário contraditório, de maior vulnerabilidade aos efeitos da crise climática.
O aumento do nível das águas e as chuvas intensas ampliam os riscos de alagamentos, desabamentos e espalhamento de esgoto e lixo em áreas sem planejamento, o que pode, também, agravar problemas de saúde pública, por meio da proliferação de vetores, como mosquitos e roedores, por exemplo.
“A realidade que a gente vive hoje é reflexo da forma como a comunidade se constitui, mas é, principalmente, reflexo da forma como a o poder público pensa as periferias. […] Somos uma comunidade que se intensifica por meio dos laços comunitários. […] Aqui, a política de base avança mais rápido do que a política partidária”, completou o historiador Kelvin.
Segundo a moradora e líder Suane Barreirinhas, a comunidade já pede há anos ao poder público obras que vão além do saneamento básico – que agora começou a sair do papel. Por meio da associação de moradores, já tinham solicitado o uso dos terrenos para construção de creches, escolas e até mesmo uma Usina da Paz — complexos públicos de cidadania lotados, principalmente, em periferias do Pará. Segundo ela, todas as respostas foram negativas.
“A gente teve uma creche até o início dos anos 2000. Ela foi retirada com a promessa de que, com o projeto habitacional concluído, seria reinstalada, mas, 25 anos depois, a gente não vê essa creche de volta. […] Não temos escola aqui dentro também”, destacou Inês Medeiros, moradora e coordenadora do cursinho popular da Vila da Barca.
A Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (Semec) confirmou que não tem previsão de construção de uma nova escola na comunidade. Ao g1, a Secretaria de Estado de Articulação da Cidadania (Seac) informou que alguns estudos chegaram a ser feitos, mas que não há previsão de ter Usina da Paz na comunidade.
A associação de moradores da Vila da Barca desenvolve projetos sociais para todas as faixas etárias, como o Roteiro Cozinha Periférica, o curso preparatório “Confluências” e a Barca Literária, que atuam na gastronomia, nos estudos para o vestibular e no incentivo da leitura dentro da comunidade, respectivamente.
“A COP não é um problema para a gente. Ela também vai nos ajudar a ter contato com outras organizações, com outras pessoas. Vai ser uma troca. […] Pensar em soluções possíveis à cidade e à nossa comunidade”, disse Suane.
Moradias da Vila da Barca que não possuem sistema de esgoto.
Juliana Bessa / g1
Perfuratriz dentro do canteiro de obras da estação elevatória, na Vila da Barca.
Juliana Bessa / g1
Palafitas ficam à beira da Baía do Guajará, em Belém, e apresentam risco de desabamento.
Juliana Bessa / g1
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