‘Como não perceberam que ele estava passando mal?’, diz filho de dentista que morreu em delegacia em SC

A morte trágica de um dentista em uma delegacia de Santa Catarina
A morte do dentista Cezar Maurício Ferreira, de 60 anos, em uma cela de delegacia em São José, na Grande Florianópolis (SC), após um acidente de trânsito, levantou questionamentos dolorosos e incredulidade entre seus familiares.
“Que isso não se repita. Que outras vidas, talvez, sejam salvas e não acabem como o meu pai”, desabafou Allan Bertoli Ferreira, um dos filhos.
“O delegado pediu pra falar comigo, e eu disse: ‘Não tem como, meu pai não bebe’. Aí ele falou que ele tinha falecido. Eu não queria acreditar no que estava acontecendo”, disse Allan.
O dia 18 de julho foi um dia atípico para o dentista Cezar Mauricio. Ele não atendeu pacientes e estava doente. Passou rapidamente em seu consultório e foi embora. No fim da tarde, o dentista saiu de casa e foi de carro até uma padaria, em São José.
Na saída do estabelecimento, Cezar se envolveu em um acidente de trânsito. O motorista do carro atingido acionou a Polícia Militar, que chegou cerca de meia hora depois. Após revistarem o veículo do dentista e não encontrarem nada, os policiais assinaram um “Auto de Constatação”, termo utilizado quando há sinais de embriaguez. O documento registrava que Cezar tinha odor etílico, fala arrastada e desorientação.
Ele foi preso em flagrante. Segundo o inquérito, Cezar não conseguiu fazer o teste do bafômetro e precisou de ajuda para entrar na viatura, onde foi colocado sem algemas.
Os dois PMs que atenderam a ocorrência foram ouvidos no local. A delegada de plantão fez as perguntas por videoconferência. Um dos policiais, André Luiz Martins da Silva, relatou que Cezar estava “totalmente desconexo da realidade” e não conseguia manter uma conversa. Outro PM, Avanir Juvenal Campos Júnior, disse ter sentido cheiro de álcool: “Não respondia, não falava nada com nada”.
A delegada observou que, mesmo horas após o acidente, ele continuava “bem fora da realidade”.
Ainda muito confuso, Cezar aguardou cerca de 40 minutos em uma cela antes de prestar depoimento. Durante o interrogatório, ele parecia desorientado. Respondia às perguntas da delegada apenas com a palavra “certo”. A delegada concluiu que ele não tinha condições de ser interrogado e encerrou o ato.
O dentista passou a noite na prisão. Pela manhã do dia seguinte, policiais encontraram Cezar morto, caído no chão da cela. A família não havia sido comunicada sobre a prisão. Uma amiga de Cezar, Cristiane, foi a primeira pessoa a ser acionada pela polícia cerca de 12 horas depois de Cezar ser levado para a delegacia.
“Nossa, aquela notícia foi como um soco no meu estômago”, contou Cristiane, que recebeu notícia de morte e informou aos filhos de Cezar.
O exame toxicológico confirmou que não havia álcool no corpo de Cezar. O laudo apontou a presença de analgésico, antibiótico, relaxante muscular e medicamentos para diabetes, depressão e problemas cardíacos. A causa da morte foi arritmia cardíaca, provocada por cardiopatia hipertrófica.
“Como é que as pessoas não perceberam que ele estava passando mal?”, questionou o filho. O advogado da família afirmou que Cezar precisava “de uma ambulância e não de um camburão”, “de um médico, não de uma delegada”, “de um hospital e uma cama de hospital, e não uma cama gelada…”.
Segundo o diretor de Assuntos Penais da OAB de Santa Catarina, Guilherme da Silva Araújo, a lei prevê que a polícia informe os familiares do preso imediatamente ou providencie atendimento médico para a pessoa se restabelecer.
Os advogados dos PMs André Luiz Martins da Silva e Avanir Juvenal Campos Júnior, responsáveis pela abordagem, afirmaram que tudo foi feito de acordo com os protocolos. “Não havia outra conduta que os policiais militares pudessem ter tido naquele momento, naquela circunstância, diferente da que eles tomaram”, disse o advogado dos PMs.
A delegada Isabel Fauth, que colheu os depoimentos, concordou com as informações do inquérito policial, mas não quis conceder entrevista. O inquérito concluiu que não houve crime na ação dos policiais.
As informações foram encaminhadas para a corregedoria da Polícia Civil e da Polícia Militar para apurar “qualquer desvio de conduta ou falha operacional” no âmbito administrativo. A Secretaria de Segurança considerou que não houve falha na ação, mas anunciou que os protocolos serão revistos.
O endocrinologista Alexandre Hohl explicou que algumas doenças ou reações a medicamentos podem produzir o hálito cetônico, um odor que pessoas com diabetes e glicose alta exalam. Isso pode confundir leigos com cheiro de álcool.
Para a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), situações de desorientação não devem deixar dúvidas: “Se ele estiver com sinais de desorientação, (…) não consegue nem soprar o etilômetro, o primeiro procedimento deve ser chamar o SAMU ou levar a uma unidade de saúde”, afirmou um diretor científico da Abramet.
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