Diário de um Legendário, dia 4: na volta para casa, homens são orientados a virar ‘sacerdotes do lar’


Essa foi uma das últimas falas na cerimônia de encerramento de minha formação nos Legendários — o retiro masculino e cristão que ganhou fama nas redes sociais.
Quem leu os três primeiros dias deste diário sabe qual é a proposta: eu, homem cristão que cresceu em lar evangélico e tem interesse sobre o assunto, subi a montanha para entender o que acontece, afinal, entre os Legendários.
Foram quatro dias sem celular, dormindo em barraca e marchando pela trilha da montanha. Os homens voltaram uniformizados e recebidos com festa — com patriotismo, testemunhos vibrantes, promessas de cura e recados diretos para as esposas.
Depois de desafios físicos extremos, conversas sobre família e momentos de comoção coletiva [LINKS], o quarto e último dia permitiu um balanço.
Como meus colegas viam seu novo papel fora da montanha? Ouvi um simbólico discurso sobre homens serem “sacerdotes da casa”.
O g1 publicou este Diário de um Legendário em quatro partes diárias, entre sábado (26) e terça-feira (29).
Não levei gravador, câmera, nem celular, que eram banidos. Mas tomei notas, que baseiam as ilustrações da equipe de arte do g1. E o que relato aqui é o que vi, ouvi e vivi durante o retiro.
Acordei com o barulho de uma panela sendo usada de tambor e alguns poucos gritos comedidos de “Acordem, senhores! Alvorada!”. Não eram ainda os voluntários nos despertando, logo ficou claro.
Eram alguns legendários recém-formados como eu, de outros subgrupos. Eles não gostaram que minha “família” (nome que deram à divisão entre os participantes) havia se estendido na noite anterior conversando em uma resenha pós-jantar, enquanto eles tentavam dormir. Para eles, era a hora do troco.
Tudo bem. Cerca de 15 minutos depois veio o chamado oficial, e aí sim saímos das barracas. A pressão para sair rápido e organizar os pertences parecia já ter entrado na rotina.
Já era manhã do que prometia ser o segundo dia seguido de sol – nosso último dia no acampamento.
Fomos agrupados pela primeira vez como batalhão uniformizado, todos vestindo a “farda”; é assim que eles chamam a camisa laranja de botões oficial do movimento. Cada participante havia recebido a sua no churrasco de formatura, na noite anterior.
Diante das famílias e suas bandeiras, três mastros haviam sido montados. À direita e à esquerda, respectivamente, uma bandeira da Bahia e outra branca com o logotipo do Legendários em laranja, já hasteadas. Ao centro, a bandeira do Brasil aguardava sua vez de subir.
Patriotismo e grito de guerra
Solta o hino nacional. Todos cantaram enquanto a bandeira subia, lentamente, até parar a meio mastro. O cordão que a erguia emperrou.
Foi vencido à base da força, mas se soltou da parte de baixo da bandeira, e ela acabou subindo o resto do caminho bem capenga. O mastro havia tombado alguns graus para a esquerda durante o esforço.
A fala inicial reforçou algo que já havia sido tema durante o retiro: o entendimento de que os problemas do Brasil estão diretamente ligados a homens que não seguem os princípios de Cristo e caem na corrupção. E que a missão de um legendário é também promover uma mudança nesse sentido.
Fomos orientados a, família por família, caminhar ao fundo do descampado e posar para a foto oficial. O fotógrafo deu orientações sobre a pose dos novos legendários; os que estavam à frente, segundo ele, deveriam ajoelhar a perna direita e apoiar a mão direita sobre o joelho esquerdo, “fazendo um L”.
A fala imediatamente gerou comentários de repulsa à esquerda lulista e risadas. O fotógrafo riu junto e acabou se corrigindo: “Faz o J”. Se de Jesus ou de Jair, não ficou claro.
Até então, eu não havia pegado nenhum comentário com menção (crítica ou elogiosa) a qualquer político, mesmo entre os irmão da minha família. As falas em contexto político eram sempre mais generalistas, contrárias à corrupção.
Na sequência, fomos a uma mesa do outro lado do descampado onde nos perguntaram nossos nomes e nos entregaram os bonés com nossos números de legendários. Meu número, 130.821, significa que, até então, quase 131 mil homens haviam completado aquele percurso de quatro dias e se tornado legendários em todo o mundo.
‘Faz o jota’
Ele então repetiu um comentário que já havia sido feito por ao menos um legendário da organização no retiro. Pediu que evitássemos falar sobre o que vivemos aqueles dias com nossas esposas ou companheiras, porque mulheres de modo geral são mais curiosas e fofoqueiras. A fala gerou risadas entre parte dos participantes.
Treinamos repetidamente o grito de guerra dos legendários. O diretor também apresentou os coordenadores das diferentes áreas de atuação de quem trabalhou no evento. Quem quisesse participar de outro encontro como voluntário, poderia buscar informações sobre o treinamento (que também é pago – algo entre R$ 100 e R$ 200, soube depois – e pode ser feito on-line).
Caminhamos até os ônibus, recebemos um lanche igual ao da ida (um pequeno sanduíche e uma banana) e dessa vez pudemos guardar as mochilas no bagageiro.
O clima na volta dentro do ônibus foi oposto ao da ida. Com as janelas abertas, logo ficou claro que estávamos no município de Santa Terezinha, local que atrai fãs de esporte de aventura. Acabava ali o segredo, afinal, todos já eram oficialmente legendários.
Colegas que haviam trabalhado no retiro conversavam com os recém-formados tirando as dúvidas mais variadas. Disseram que eles trabalham de maneira voluntária e ficam submetidos às mesmas condições dos participantes, de modo geral. Dormem em barracas e recebem o mesmo saquinho magro de comida para ser consumido ao longo dos três primeiros dias.
Também contaram sobre o processo para “servir”, como eles chamam o voluntariado. Os relatos eram de que se tratava de uma experiência bem diferente a nível espiritual, e muitos dos recém-formados já estavam empolgados com a ideia de voltar a subir uma montanha servindo.
O reencontro com a família
Descemos dos ônibus de volta à Igreja Batista Lagoinha de Salvador, todos uniformizados, e entramos em formação com nossas mochilas no estacionamento. Ali nos devolveram nossos celulares e outros itens confiscados três dias antes. Eram 13h08 quando voltei a ter noção exata do tempo.
A recepção dentro da igreja, lotada de familiares e amigos dos novos legendários, foi extremamente calorosa.
Era como o momento em que um lutador de MMA faz o caminho até o ringue: no templo escuro, com parte do teto iluminado de laranja, passamos por um corredor iluminado cujas laterais eram braços que tentavam chamar atenção, erguendo cartazes e balões, filmando com os celulares.
Recepção dos novos legendários na cerimônia de encerramento. Vídeo foi feito depois que recebemos de volta nossos eletrônicos, que foram confiscados no 1º dia
Fábio Tito/g1
Crianças no chão ou nos colos observavam impressionadas, buscando o rosto do pai ou vibrando junto dos adultos.
A trilha sonora era um rock legendário e repetia o refrão: “E eu vou, vou subir a montanha!”. Depois, um hino clássico do meio evangélico com pegada militar: “O nosso general é Cristo / Seguimos os seus passos / Nenhum inimigo nos resistirá!”.
Depois de muita festa, abraços e beijos emocionados na família, os novos legendários se sentaram no chão diante do palco, e os familiares, nas cadeiras.
A cerimônia de encerramento começou com a exibição de um vídeo curto no telão, muito bem produzido. Nele, algumas cenas do que vivemos no retiro eram acompanhadas de uma mensagem que exaltava a transformação a que aqueles homens haviam se sujeitado.
Novos legendários: o mais celebrado
Abriu-se então espaço para alguns novos legendários subirem ao palco para dar seus testemunhos. O jargão é comum no meio evangélico e significa contar uma experiência de fé transformadora. E a história principal ficou para o fim.
Chamaram ao palco um legendário e sua família. Contaram que Jucemar Moreira, de 64 anos, tem doença de Parkinson, mas que isso não o impediu de subir a montanha em busca de sua transformação.
Ao longo do retiro, ele certamente foi o mais celebrado entre todos os senderistas (nome dado aos participantes antes de virarem legendários). Para mim era sempre uma surpresa vê-lo chegando ao acampamento a cada noite, com o rosto sempre plácido, às vezes amparado por algum companheiro de seu grupo.
“Eu fui com a expectativa de ser curado”, Seu Jucemar me contou cerca de 40 dias depois do retiro, na antevéspera da publicação deste diário.
Ele contou que chegou a sofrer uma queda e que considerou seriamente desistir no trecho mais duro da subida, mas que sentiu “como se um anjo o levasse” adiante naquele momento.
Ele foi poupado de algumas atividades mais intensas por conta das limitações físicas, e teve ajuda para carregar sua mochila. Mas a trilha em si, nosso maior desafio físico, ele completou toda a pé.
Depois também me disse que foi autorizado a levar as medicações controladas que toma, mas que não teve qualquer auxílio da organização para tomá-las no horário correto (ele não pôde levar relógio, como todos nós). Mas afirmou que correu tudo bem.
Na igreja, depois de muitos aplausos, a palavra foi passada a outro legendário que estava servindo no retiro. Ele disse que soube da história de Jucemar durante a trilha e que na mesma hora recebeu um comando do Espírito Santo.
Explicou que já existe algo próximo de uma cura para o Parkinson, uma cirurgia na qual instalam no cérebro um artefato que controla e cessa as crises de tremedeira muscular, melhorando consideravelmente a qualidade de vida. E disse que ele é o dono da distribuidora desse equipamento no Brasil.
Seu Jucemar está passando por exames para verificar sua compatibilidade e, em caso positivo, o legendário disse que ele vai receber o tratamento como doação, sem custo algum. Segundo ele, o tratamento completo custa mais de R$ 220 mil.
No momento da publicação deste diário, Jucemar aguarda a última bateria de exames para confirmar se poderá ser submetido à cirurgia dentro dos próximos meses.
Discurso de Lady
Já caminhando para o final do evento, o diretor passou a palavra à sua esposa. No Legendários Bahia, é ela que está à frente das “ladies”, grupo de mulheres composto principalmente pelas esposas dos legendários – também aberto a mães e namoradas.
Ela apresentou dois vídeos de homenagem às ladies. A produção simples, que não se comparava à do vídeo dos Legendários no começo da cerimônia, tinha relatos de outras ladies, momentos em que elas se reuniram para se conhecer e orar, fazer a maquiagem uma da outra, até uma fala da própria esposa do diretor:
“O casamento é de união. É unidade. As decisões têm que ser tomadas em conjunto. Se você toma uma decisão sozinha, porque você tem o seu dinheiro separado do dele, você vai competir. Se você compete, você joga o seu marido lá embaixo”, ela começa.
“‘Ah, mas eu que tenho uma empresa dentro da minha casa.’ Mas [isso é] porque você não tem uma unidade com seu esposo. Me desculpe falar, mas essa é a verdade. Não tem como. No momento em que você entender sobre unidade, você vai entender que, ou ele vai entrar na sua empresa, ou você vai ensinar o caminho das pedras, já que você sabe.”
Após quase 4 horas de cerimônia, era o fim do meu Legendários.
Considerações finais
Mesmo depois de toda a experiência, não posso dizer que me considero um legendário – apesar de ter meu número oficial. Boa parte das ideias propagadas no retiro vai na direção oposta à das minhas convicções como cristão.
Evitei levantar meus incômodos durante o evento para não comprometer a experiência dos irmãos da minha família, e porque isso poderia afetar meu relato. Fiz boas amizades com os 12 companheiros de jornada e enxerguei neles vontade verdadeira de se tornarem homens melhores.
Sei que, assim como para eles, o retorno à “vida real” também me foi importante para refletir sobre todo o processo.
Este foi o meu relato dos quatro dias intensos na montanha, em uma abordagem jornalística com o propósito de enriquecer o debate acerca desse movimento de homens cristãos. E, se você o leu por completo, fica a pergunta: o que você acha dos Legendários?
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