
A Norma Regulamentadora nº1 — NR1 passou a reconhecer oficialmente os riscos psicossociais como parte dos riscos ocupacionais, representando um marco importante nas políticas de segurança e saúde do trabalho no Brasil. A mudança impõe às empresas a responsabilidade de mapear, prevenir e tratar situações que impactem o bem-estar psicológico dos colaboradores.
“As doenças ocupacionais sempre existiram, mas nem sempre foram reconhecidas no âmbito da saúde mental”, explica Caique Franzoloso, psicólogo e docente da Faculdades Pequeno Príncipe (FPP). “Os riscos psicossociais incluem situações como sobrecarga, ambientes tóxicos, baixa remuneração, ansiedade, burnout e depressão”, completa.
Segundo ele, por muito tempo, os riscos eram associados apenas à ergonomia, força física ou exposição a agentes químicos. O cenário institucional, entretanto, passou a apresentar o adoecimento de colaboradores por meio da ansiedade generalizada, depressão e burnout, “que nada mais é do que o esgotamento físico e mental do funcionário por conta de uma sobrecarga de trabalho”, esclarece o psicólogo.
Para o engenheiro de segurança do trabalho Rafael Franco, a atualização da norma representa um avanço fundamental para a atuação da área. “A conscientização sobre a saúde mental e a busca por um ambiente de trabalho saudável pode contribuir significativamente para a saúde física dos colaboradores, reduzindo estresse, problemas de saúde física (dores de cabeça e problemas digestivos e cardiovasculares), diminuição do absenteísmo, levando ao aumento da produtividade”, explica.
NR1 e Recursos Humanos: quais os impactos?
Um dos episódios motivadores para que a nova NR1 atualizasse sua visão sobre o trabalho contemporâneo foi a incorporação do burnout na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) pela OMS, em 2022.
Agora, ao apresentar um diagnóstico de burnout, mediante apresentação do atestado médico, o trabalhador poderá ter até 15 dias de afastamento remunerado pela empresa. Se o afastamento ultrapassar esse período, o colaborador passa a receber auxílio-doença do INSS e, em alguns casos, poderá ter direito à estabilidade no emprego por 12 meses após o retorno.
“É um avanço que visa promover uma maior qualidade de vida para os trabalhadores. Consequentemente, quando está satisfeito com o trabalho, o indivíduo rende mais, se adequa melhor às organizações, veste a camisa da empresa”, avalia Franzoloso.
Reforçando essa perspectiva, a gerente de RH e presidente da CIPA-FPP, Isabella Prudente, explica que o RH pode protagonizar a implementação da NR1. “Há diversas formas: na identificação, avaliação e monitoramento dos riscos psicossociais, no desenvolvimento de políticas, na capacitação de gestores e colaboradores, além de ser o principal canal de comunicação sobre a importância da saúde mental”, diz Isabella.
Ressalta, ainda, que “a gestão dos riscos psicossociais é um trabalho contínuo a ser realizado pelo Núcleo de Gestão de Pessoas. É preciso monitorar os resultados das ações, ouvir os feedbacks e, sempre que necessário, adaptar as estratégias”.
Para Rafael Franco, a dificuldade de mensurar riscos invisíveis, como estresse e burnout, é um dos principais desafios enfrentados pelas empresas. “Essas condições nem sempre manifestam sinais claros no início e são experiências que nem sempre agem da mesma maneira em cada indivíduo. Vale lembrar que os fatores psicossociais não são causados por um único fator, podem ser combinações de elementos no ambiente de trabalho e da vida pessoal”.
Ele aponta que, na ausência de ferramentas exatas de medição, a área de segurança do trabalho utiliza instrumentos qualitativos, como pesquisas de clima e entrevistas. “Esses métodos dependem muito da confiança e da honestidade do colaborador, por isso também consideramos dados indiretos, como taxas de absenteísmo, acidentes de trabalho e queixas médicas, buscando identificar padrões com o apoio de gestores treinados”, completa.
As ferramentas apontadas por Rafael para ações de segurança do trabalho também são utilizadas pelo setor de RH, conforme compartilha Isabella: “Com base nas informações levantadas, o RH consegue propor e implementar políticas efetivas de combate ao assédio, programas de gerenciamento de estresse, além de desenvolver ações de promoção do equilíbrio entre vida pessoal e profissional e programas de apoio psicológico”, explica a gerente.
NR1 e CIPA: relacionamento humano e próximo
A Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, conhecida como CIPA, é uma comissão com atuação dentro das empresas, composta por representantes do empregador e dos empregados, e também desempenha papel fundamental no cumprimento da NR1.
“A CIPA está no dia a dia das atividades e, por seus membros terem mais proximidade e estarem em contato direto com os colegas, podem ser os primeiros a perceberem situações que impactam na saúde mental”, pontua Isabella.
“Com essa sinalização, o RH consegue desenvolver ações mais assertivas para mitigar esses fatores, como a revisão de processos, a melhoria da comunicação interna ou a criação de espaços para relaxamento”, completa.
Ações que favorecem a efetivação da NR1
Tornar o cuidado com a saúde emocional algo natural e acessível é um desafio crescente nas organizações, e algumas iniciativas já vêm se destacando nesse sentido. Isabella Prudente afirma que o caminho está na criação de ambientes de trabalho mais acolhedores e saudáveis.
“É possível desenvolver ações ao longo do ano que promovam o bem-estar integral. Além disso, é possível implementar ações mensais, como massagem, quiropraxia e auriculoterapia, que demonstram cuidado com o corpo e a mente”, sugere.
Segundo Isabella, a presença de uma Medicina do Trabalho sensível às questões emocionais pode fazer toda a diferença. “Esse setor pode ser um ponto de entrada importante para acolher o colaborador e direcioná-lo ao suporte necessário”.
Mais do que ações pontuais, a gerente de RH enfatiza a importância de cultivar uma cultura de empatia e apoio mútuo. “É um processo de construção contínua, em que a voz de cada um importa”.
Rafael Franco também reforça que o diálogo entre os setores é essencial para o sucesso das ações preventivas. “Essa comunicação é fundamental para construir uma cultura de prevenção mais eficiente e completa, pois fortalece a conscientização, promovendo ações eficazes que garantem o bem-estar dos colaboradores”, afirma.
Norma x cultura organizacional
Embora a pauta da saúde mental já integre a cultura organizacional de startups e empresas mais jovens, o desafio maior está com as grandes corporações, que precisarão adaptar estruturas rígidas a uma nova lógica de gestão de pessoas.
O fator geracional também revela impactos. Para a geração Z, por exemplo, saúde mental não é mais um extra: é uma exigência. “Eles já entram no mercado buscando flexibilidade, alinhamento com valores pessoais, ambiente saudável e uma cultura de feedback constante”, explica Caique Franzoloso.
A gerente de RH, Isabella Prudente, concorda: “A saúde mental está cada vez mais em evidência, prova disso é a nova NR-1. Portanto, organizações que priorizam a saúde mental de seus colaboradores acabam se tornando mais atrativas. Profissionais que se sentem cuidados e valorizados são menos propensos a buscar outras oportunidades”.
“Além disso, quando os colaboradores estão com uma boa saúde mental, estão mais focados, criativos e mais motivados. Identificamos também que há menor falta ao trabalho, com uma qualidade de entrega melhor”, completa Prudente.
E para os estudantes da saúde, o que muda?
Com a atualização da NR1, novas oportunidades também surgem para os psicólogos e profissionais da saúde em formação. Os estudantes podem se preparar para atuar diretamente com consultorias em saúde mental, implementação de políticas organizacionais e acompanhamento das normas regulamentadoras.
“Esse é um novo campo de trabalho que se abre para a Psicologia e áreas afins. Os estudantes precisam se apropriar dessas novas normativas e oferecer soluções reais às empresas, auxiliando-as na execução e implementação da R1”, destaca o psicólogo.