
86% das escolas de lata da Grande São Paulo não têm laudo obrigatório de segurança dos bombeiros
Reprodução/TV Globo
Duas décadas após serem implantadas como uma solução emergencial para a falta de vagas na rede estadual, as chamadas “escolas de lata” ainda fazem parte da paisagem educacional da Grande São Paulo. Hoje, 44 dessas estruturas metálicas seguem ativas na capital e em municípios vizinhos — e 38 delas, o equivalente a 86%, não têm o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB).
👉O AVCB é o documento emitido após uma vistoria técnica que comprova se uma edificação está em conformidade com as normas de segurança contra incêndio e pânico.
Ele é obrigatório para funcionamento de escolas, hospitais, prédios comerciais e espaços com circulação pública.
No ambiente escolar, sua ausência representa um risco direto para estudantes, professores e funcionários, por indicar que a edificação pode não ter saídas de emergências adequadas, sistemas de alarme e combate ao fogo ou condições estruturais seguras para evacuação em caso de emergência.
Segundo o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), a ausência do AVCB nas escolas de estrutura metálica, conhecidas tecnicamente como padrão Nakamura, escancara uma falha do poder público com o bem-estar de milhares de estudantes. A estimativa mais recente é de que cerca de 65 mil alunos estejam matriculados nessas unidades na região metropolitana.
Procurada, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo afirma que fez obras de melhoria em 25 dessas escolas e que duas unidades serão substituídas, além de haver a previsão de construir novas escolas no estado. (Leia mais ao final.)
A reportagem também procurou o Corpo de Bombeiros, mas não havia obtido resposta até a última atualização desta reportagem.
Infraestrutura precária
Essas escolas foram construídas entre 1997 e 2002 como estruturas modulares com paredes e telhados de chapa metálica. O objetivo, na época, era resolver de maneira provisória o déficit de vagas na rede.
O problema é que o caráter temporário nunca foi superado: a maioria das unidades segue funcionando com estruturas incompletas, que não garantem o conforto térmico, acústico ou segurança estrutural.
O desconforto é relatado por praticamente todos os estudantes: no verão, as salas de aula tornam-se estufas;. No inverno, é necessário usar várias camadas de roupa. Em dias de chuva, o barulho do impacto nas telhas metálicas inviabiliza a comunicação entre professores e alunos.
“O problema é em tornar o provisório permanente”, afirma Valter Caldana, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Segundo o especialista, a principal falha está em manter um sistema construtivo incompleto por tanto tempo:
Essas reclamações são quase que óbvias, ou seja, a reverberação vai ser maior, a sensação daquele barulho que ecoa vai ser maior, o vazamento de som de uma sala para outra vai ser maior. Por quê? Porque efetivamente é um sistema que não está completo.
Laudos ignorados
Em 2021, um relatório técnico do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) analisou o desempenho térmico das paredes metálicas dessas escolas.
A conclusão foi que, mesmo após pequenas melhorias feitas em algumas unidades — como a aplicação de camadas de alvenaria externa — a estrutura interna permaneceu inalterada, com teto metálico e divisórias finas. Isso significa que, apesar da fachada levemente modificada, os desconfortos térmico e acústico seguem os mesmos.
O promotor Bruno Orsini, do Ministério Público de São Paulo, afirma que “foi pífia a evolução, justamente porque eram 75 escolas ao tempo da instauração do inquérito civil. Temos notícias documentadas de que três dessas escolas ao longo dos anos incendiaram e, portanto, não existem mais. Hoje em dia no levantamento, o número totalizante é de 64 escolas”.
Sobre o risco à segurança, ele ressalta:
“O Ministério Público aguarda apenas que o Corpo de Bombeiros conclua as vistorias e inspeções em curso em todas essas escolas, justamente para avaliar se elas contam ou não com o AVCB e o AVCB válido, que é justamente a certificação que garante a segurança contra incêndio nessas instalações”.
Orsini destaca ainda o caráter excludente dessas unidades escolares: “Essa é a conclusão que o Ministério Público até agora desenhou no inquérito civil, no sentido de que efetivamente essas escolas se localizam nas regiões mais pobres do Estado de São Paulo”.
Ele explica que, além da precariedade física, essas estruturas não contam com os mesmos recursos pedagógicos das demais escolas da rede.
A grande maioria delas não tem em suas instalações quadras esportivas, teatros, auditórios, laboratórios de ciências em geral, bibliotecas, salas de informática e, portanto, não oferecem as mesmas oportunidades educacionais para os estudantes que frequentam essas escolas.
População mais vulnerável é a mais atingida
Uma análise cruzada de localização das escolas e dos dados socioeconômicos — feita com base em estudos do MP e em relatórios técnicos do governo — indica um padrão.
As unidades de lata estão, quase sempre, inseridas em regiões marcadas por alta vulnerabilidade social, baixa renda familiar, precariedade habitacional e oferta limitada de serviços públicos.
Nessas regiões, a escola pública é, em muitos casos, o principal equipamento estatal disponível. Ainda assim, as unidades localizadas nesses territórios operam, frequentemente, em estruturas com condições inferiores às das demais escolas da rede.
A escola é o edifício público mais importante de todos. Quando você está falando de níveis socioeconômicos mais baixos, isso é ainda mais importante, porque a referência de qualidade espacial, a referência de qualidade simbólica, a referência de qualidade material é a escola.
Qual é a solução?
Para Caldana, diante da situação atual, existem três caminhos possíveis: “Esse que é o ponto importante. O que há é a necessidade de um estudo de viabilidade para saber onde se perde menos, porque se perder irá. Mas, ao definir onde se perde menos e qual é o caminho, é preciso fazer um projeto. Um projeto geral da edificação e da arquitetura desse sistema e depois esse projeto geral será aplicado caso a caso.”
O professor também ressalta que não basta seguir fazendo ajustes isolados nas estruturas metálicas. “Paliativos existem muitos. Eles poderão melhorar a situação? Sim. Mas, isso não quer dizer que eles vão resolver a situação.”
Mesmo assim, Caldana reforça que o estado dispõe de corpo técnico para resolver o problema.
“O governo do Estado tem um órgão interno chamado FDE (Fundação para Desenvolvimento da Educação) que é de alta capacitação técnica. Ou seja, há o que fazer. O governo estadual tem capacitação técnica para fazer isso. É necessário que haja uma decisão política sobre qual caminho a ser adotado.”
O que diz a Secretaria da Educação
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo afirma que, em 30 meses de gestão, realizou obras de melhoria em 25 escolas padrão Nakamura, com investimento aproximado de R$ 18,3 milhões. Diz ainda que duas unidades estão sendo substituídas completamente e que há previsão de construção de novas escolas no estado, embora não tenha confirmado se alguma substituirá as de estrutura metálica.
A pasta afirma ainda que “a prioridade é garantir condições adequadas de aprendizado para os mais de 3 milhões de alunos da rede estadual”, mas não apresentou um cronograma público de desativação das escolas de lata nem detalhou as soluções previstas para as que seguem sem AVCB.
Escolas de lata ainda são realidade para mais de 65 mil alunos em São Paulo