Escritora Lilia Guerra diz ter sido acusada de furtar roupa de cama em pousada na Flip e denuncia racismo da organização


A escritora Lilia Guerra.
Divulgação
A escritora Lilia Guerra, autora de “O Céu para os Bastardos”, relatou ter sido acusada de furtar um lençol e uma manta de uma pousada dias depois de ter voltado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2025, evento que ocorreu entre 30 de julho e 3 de agosto.
Ao g1, ela negou a acusação, afirmou que foi vítima de racismo estrutural — prática que não diz respeito a fatos isolados de preconceito, mas a um sistema profundo e organizado que reproduz desigualdades — e que a situação a deixou “atônita e incrédula”.
Segundo Lilia, o episódio começou após uma noite de hospedagem na pousada Garden Hotel Boutique Paraty, no Rio de Janeiro, onde, segundo ela, encontrou condições precárias de acomodação. O local foi escolhido e custeado pela organização do evento, no qual a escritora palestrou.
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“O quarto tinha problemas estruturais, o chuveiro e o ralo não funcionavam bem, e a porta do banheiro estava se desfazendo. Pedi um cobertor extra porque fazia muito frio, mas me ofereceram apenas uma manta e um pedaço de tecido”, contou.
No dia seguinte, após relatar os problemas à equipe da Flip, a escritora foi transferida para outro hotel. Dias depois, já de volta a São Paulo, procurou a pousada para checar o setor de achados e perdidos, pois acreditava ter esquecido um par de tênis. A resposta foi negativa.
“Ninguém me disse nada sobre lençóis ou mantas desaparecidas”, afirmou.
Cobertas oferecidas à escritora Lilia Guerra pela pousada Garden Hotel Paraty.
Arquivo pessoal
A surpresa veio na quarta-feira (13), dez dias após o evento, quando recebeu, por WhatsApp, uma mensagem de um integrante da equipe da Flip, informando que a pousada alegava que ela havia levado embora um lençol e uma manta.
Segundo ela, a equipe da Flip disse que a pousada estava fazendo pressão há dias, perguntando sobre o ressarcimento dos itens.
O texto ainda dizia: “Duvido muito que isso tenha acontecido, mas, se aconteceu, você só confirma para a gente pagar?”.
“Isso acabou comigo. Eu não conseguia acreditar que estavam cogitando que eu pudesse ter furtado. Pedi, pelo amor de Deus, um cobertor porque não havia nenhum disponível e estava frio. Como eu poderia levar algo que nem caberia na minha mala?”, indagou.
Livro de Lilia Guerra: ‘O céu para os bastardos’
Reprodução/TV Globo
Segundo ela, assim que teve conhecimento da acusação, ligou à pousada para entender o que estava acontecendo. No telefone, a pessoa que a atendeu informou que não havia algum responsável no momento para lidar com o caso.
“É por que sou pobre, por que sou negra? Será que um autor branco, famoso, teria passado pela mesma situação?
“Eu não estava passando férias. Tive mesas todos os dias, menos domingo. Isso é trabalho. O meu trabalho. E era isso o que eu queria fazer: falar do quanto a literatura influenciou os caminhos que minha vida tomou, porque acredito no poder da palavra”, disse.
Ao g1, a pousada afirmou que não acusou a autora de furto. Segundo a administração do local, durante a Flip houve diversas trocas de hóspedes, e a pousada perguntou à organização da festa se algum item teria ficado perdido nessas mudanças. A pousada lamentou ainda que a comunicação feita pela organização com a autora tenha sido em tom acusatório.
Em nota, a Flip também lamentou profundamente o ocorrido. “Reforçamos a responsabilidade e compromisso posicionando-se de forma firme e solidária ao lado de Lilia Guerra, assegurando todo o acolhimento à autora.”
Desigualdade em espaços elitizados
Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e moradora de Cidade Tiradentes, na periferia da Zona Leste de São Paulo, Lilia tem se consolidado como uma das vozes mais potentes da literatura brasileira contemporânea.
Esta foi a segunda participação da autora na Flip. Em 2023, ela esteve em uma mesa da programação paralela do evento e, neste ano, conversou a chilena Alia Trabucco Zerán sobre a herança escravocrata do trabalho na América Latina.
Para ela, o episódio expõe a desigualdade de tratamento em espaços culturais que dizem prezar pela diversidade.
Seu livro mais recente, “O Céu para os Bastardos” (Todavia, 2023), mistura realidade e ficção ao narrar histórias de personagens marginalizados, questionando os limites da dignidade humana. Segundo ela, o que viveu em Paraty dialoga diretamente com a literatura que produz.
“Nos meus livros, esse tipo de situação aparece o tempo todo. Achei que não seria leal silenciar sobre o que aconteceu comigo. Escrever é o meu ofício, e eu precisava me posicionar”, disse.
As pessoas da minha comunidade ficaram orgulhosas da minha participação na Flip. Eu queria que fosse um momento memorável. Mas, se dias depois sou acusada de furto, como vou explicar que ocupar esses espaços é seguro?
À autora, a pousada enviou uma nota dizendo que não teve intenção de acusar a escritora. Segundo o estabelecimento, a equipe de limpeza constatou a ausência de uma peseira (peça de decoração utilizada para proteção dos pés da cama) e um cobertor após a saída da hóspede, e o contato com a Flip teria sido feito apenas “para confirmar se os itens poderiam ter sido levados para outro quarto ou retirados por engano”.
“Lamentamos muito se a forma como a mensagem foi repassada transmitiu outra impressão”, diz o texto enviado à escritora.
A escritora informou que sua editora solicitou uma reunião com a organização do evento para discutir a situação.
Para a escritora, a acusação que sofreu deve abrir uma reflexão maior. “Acho importante discutir sobre isso porque se fala tanto em ocupar espaços de privilégio e excludentes, mas quando vou é isso que acontece.”
“Sei que corro o risco de que alguém diga que estou me vitimizando, querendo me promover. Mas eu não preciso e nem quero utilizar esse tipo de recurso. Só que, as coisas precisam mudar. Alguém vai sentir dor. Está doendo hoje, mas vai passar.”
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