
O mercado de atestados e receitas falsas nas redes sociais
O pediatra João Batista, 72, estava no consultório quando recebeu uma carta do Conselho Regional de Medicina (CRM) de São Paulo questionando uma suposta enxurrada de atestados médicos emitidos por ele. “Disseram que eu tinha dado oito ou nove atestados para a mesma pessoa. Nunca a vi. Nem sei como conseguiram meus dados”, conta.
Não foi a primeira vez. Há seis anos, ele já havia sido vítima do mesmo esquema, que cresce exponencialmente na internet. E João não foi o único. Médicos pelo Brasil têm tido seus dados expostos e utilizados ilegalmente na falsificação de documentos.
Grupos nas redes sociais, em especial no Telegram, vendem medicamentos, receitas, atestados, laudos e até requisições de exames falsos com nomes reais de médicos — muitos deles sequer sabem que estão envolvidos.
g1
Crescimento de mais de 20 vezes em sete anos
Um levantamento inédito obtido com exclusividade pelo g1 mostra a dimensão do problema. Segundo dados de Ergon Cugler, pesquisador CNPq do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/CEAPG/FGV), o número de anúncios sobre medicamentos e documentos médicos falsos cresceu mais de 20 vezes desde 2018 no Telegram — saltando de 686 para mais de 15 mil publicações por ano no Brasil.
Em 2025, até julho, esses conteúdos já foram visualizados quase meio milhão de vezes (segundo dados que podem ser conferidos na própria plataforma, que indica o total de visualizações de cada post de anúncio). Hoje, mais de 27 mil pessoas participam ativamente de comunidades voltadas à comercialização desses documentos.
E não se trata de uma venda artesanal: bots automatizados, perfis falsos e marketplaces organizados facilitam a entrega e reduzem o risco de rastreamento. O pagamento é rápido, e o acesso ao conteúdo, imediato.
Metodologia do levantamento
🔍 O g1 procurou Cugler e solicitou o levantamento dos dados após uma busca rápida nas redes sociais encontrar um mundo de receitas e atestados. Membro do Conselho da Presidência da República e pesquisador do laboratório de estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DesinfoPop/FGV), Ergon Cugler integra a iniciativa de enfrentamento à desinformação em saúde no edital do Ministério da Saúde com o CNPq.
📊 Para levantamento dos dados, o pesquisador utilizou a ferramenta TelegramScrap desenvolvida por ele e disponível no repositório da Universidade de Cornell, em Nova Iorque. A plataforma é pública e já foi utilizada por investigadores italianos para rastrear golpistas e por pesquisadores para identificar células nazistas que radicalizam jovens para o Hezbollah, grupo extremista libanês.
📋 Pela plataforma, ele extraiu todas as publicações feitas nessas comunidades e cruzou os dados separando-os por data e tema.
Telegram se torna ‘plataforma oficial’ de venda de atestados e receitas falsas.
g1
O que o ‘mercado’ ilegal oferece
O g1 localizou vendedores em questão de segundos no Telegram. Eles oferecem três tipos de documentos:
receitas brancas, usadas para medicamentos comuns sem controle especial;
receitas azuis, exigidas para psicotrópicos de uso controlado; e
receitas amarelas, destinadas a entorpecentes e remédios de uso mais restrito — todas anunciadas com carimbos reais para simular autenticidade.
As receitas controladas vêm com nomes e registros de médicos verdadeiros, e o comprador recebe orientações detalhadas para impressão e uso — como evitar farmácias grandes e assinar por cima do carimbo.
“Basta imprimir em folha comum, cortar no tamanho certo e apresentar na farmácia”, diz uma das instruções repassadas pelos vendedores à reportagem.
A recomendação é circular por drogarias até encontrar uma que aceite, o que, eles dizem, costuma acontecer em unidades de menor porte.
Receita falsa obtida pela reportagem é assinada por médica mineira
g1
Há, ainda, o oferecimento de atestados médicos com os dias de afastamento determinados pelo comprador. Ele escolhe, ainda, o CID (descrição da doença) e a recomendação médica a ser preenchida.
A maior parte desses documentos é assinada por médicos reais, com CRMs que correspondem ao registro médico. Ainda assim, a maioria deles sequer sabe que os dados têm sido utilizados por um mercado paralelo.
Medicamentos também são vendidos sem necessidade de receita pelos golpistas. Os mais anunciados são:
remédios tarja-preta (da classe dos opióides, benzodiazepínicos e drogas Z),
medicamentos abortivos;
inibidores de apetite (desde que passaram a ser vendidas sob retenção de receita, as canetas emagrecedoras entraram na lista).
print google receitas falsas
Reprodução
Embora o Telegram concentre a maior parte dos grupos de compra e venda de documentos médicos falsos, Google, Facebook, Instagram, X e TikTok não estão fora do mercado. O Google e a Meta, inclusive, ganham dinheiro com o comércio clandestino: o g1 encontrou anúncios publicitários pagos de documentos médicos falsos nas plataformas de ambas as empresas.
No TikTok, uma simples busca encontra vídeos de pessoas detalhando como conseguiram os documentos –e, nos comentários, vendedores anunciam seus produtos. No X, um cardápio de opções é oferecido aos usuários.
Meta lucra com anúncios no Facebook e Instagram
g1
Arte g1/Ergon Cugler
CFM quer automatizar processo de emissão de atestados
Conselheiro do Conselho Federal de Medicina (CFM) e médico do trabalho, Carlos Magno Dalapicola já foi vítima: um atestado de dez dias foi emitido com seu nome e CRM sem seu conhecimento. “Fui à polícia, registrei boletim de ocorrência e comuniquei ao conselho. Mas sei que nem todos os médicos conseguem fazer isso; muitos nem ficam sabendo.”
Segundo ele, a facilidade com que se falsifica documentos médicos no Brasil é alarmante.
Na tentativa de frear a comercialização, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou um sistema que rastreia digitalmente atestados médicos. Segundo Hideraldo Cabeça, diretor da área de tecnologia do conselho, o objetivo é garantir que todo documento médico tenha origem verificada e emissão autenticada por um profissional registrado.
A ideia é simples: ao emitir um atestado, o médico é notificado e pode confirmar ou não a validade do documento. A ferramenta inclui biometria, assinatura digital e integração com plataformas do governo.
A Resolução do CFM que cria a plataforma, entretanto, foi suspensa por decisão do TRF-1, após ação movida pelo Movimento Inovação Digital (MID), uma associação sem fins lucrativos que reúne empresas de tecnologia e inovação — incluindo fornecedoras de soluções digitais para o setor de saúde.
Na ação, o movimento argumenta que a plataforma concentra o controle dos atestados em um único sistema, o que poderia criar um monopólio e obrigar empresas privadas da área a aderirem mediante pagamento, afetando prestadores que já oferecem soluções próprias. Também critica a falta de integração com sistemas do SUS e do setor privado.
O CFM entrou com um pedido para derrubar a liminar, que foi negado pelo juiz. O processo agora tramita em segunda instância, após recurso do Conselho, e já recebeu parecer favorável do Tribunal de Contas da União (TCU). O CFM afirma que o objetivo da plataforma é combater fraudes e que seu uso é gratuito para médicos, pacientes e empresas que validarem atestados.
No TikTok, a divulgação é feita pelos comentários.
g1
Anvisa cria piloto para emissão de receitas
Desde julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) utiliza um sistema nacional para emissão e controle de números de receitas de medicamentos sujeitos a controle especial. Funciona como um “cartório” digital: cada número é gerado pela Anvisa e vinculado a um médico, permitindo verificar se a receita existe e se foi emitida por um profissional autorizado.
Agora, o órgão testa uma nova etapa, ainda em fase piloto:
Conexão: Plataforma vai conectar esse sistema diretamente aos programas de prescrição digital usados pelos médicos.
Autenticação: Quando a receita for emitida de forma eletrônica, a plataforma solicitará automaticamente um número válido à Anvisa.
Checagem: Na farmácia, o atendente poderá checar, em tempo real, se o documento é verdadeiro, se já foi utilizado e confirmar a identidade do prescritor.
Participam dos testes três plataformas — duas privadas e a plataforma de prescrição eletrônica do CFM. A expectativa é que, quando a atualização estiver implantada –a previsão é no fim do ano –, as farmácias consigam fazer essa validação automática para todas as receitas digitais, ampliando a segurança, reduzindo fraudes e permitindo uma vigilância mais eficiente.
“Estamos trabalhando por etapas, com foco em segurança e uso legítimo. A proposta é fechar as pontas do fluxo da prescrição, reduzir fraudes e permitir ações mais eficazes de vigilância”, afirma à reportagem Thiago Brasil Silverio, coordenador do sistema na Anvisa.
Usuários divulgam canais de vendas de receitas e atestados falsos no X.
g1
O que dizem as plataformas de mídia
O g1 acionou o Telegram, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. A empresa não tem sede nem representante legal no Brasil, o que dificulta ações judiciais e impede o cumprimento de decisões locais.
“O Telegram funciona como uma rede híbrida. Você digita ‘receita falsa’ ou ‘atestado médico’ e já aparece uma lista de grupos com esse tipo de conteúdo. E o pior: se pagar por uma conta premium, a própria plataforma recomenda canais semelhantes”, afirma o pesquisador responsável pelo levantamento dos dados, Ergon Cugler.
Sob esse esquema, o Telegram lucra com contas que comercializam documentos falsos. Isso acontece porque, ao assinar uma versão paga do aplicativo, o usuário recebe da plataforma centenas de indicações de grupos de mesmo tema.
“A plataforma recebe para permitir que canais ilegais se tornem mais visíveis. É um ciclo vicioso, com lucro, ausência de regulação e impunidade”, diz Cugler.
A reportagem também procurou o Google, a Meta e o X, que não responderam aos questionamentos. Já o TikTok afirma que tem “um time robusto de Segurança, que combina tecnologia e trabalho humano (mais de 40 mil profissionais) para localizar e remover qualquer conteúdo ou interação que possa ser relacionada a comportamentos nocivos. Continuamente identificamos e removemos conteúdos e perfis que violam nossas Diretrizes da Comunidade e nossas Políticas de Anúncios”.
Propostas de regulação arquivadas no Congresso
O Brasil não tem obrigatoriedade de representação legal no país por parte de plataformas com grande base de usuários. Alguns projetos de lei, como o engavetado PL das Fake News, tinha entre as propostas a mudança desse cenário.
Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, mudou a interpretação do Marco Civil da Internet, permitindo a responsabilização civil mesmo sem ordem judicial formal.
Ainda assim, nenhuma medida concreta foi aplicada ao Telegram nem a outras plataformas de mídia — o que mantém a internet como um terreno fértil para esquemas de falsificação.
Riscos para a saúde pública
Os especialistas concordam que o avanço desse mercado ilegal representa um risco real para a saúde da população. “Pacientes conseguem medicamentos controlados sem qualquer orientação médica, se automedicam e ficam expostos a efeitos adversos graves”, afirma Dalapicola.
Para o diretor de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina, Marun Cury, o buraco é mais profundo. “É exercício ilegal da medicina. E o pior: a polícia tem tantas prioridades que acaba tratando esse crime como menor, quando na verdade ele coloca vidas em risco.”
“Quando alguém usa uma receita falsa para comprar remédio tarja preta, não tem acompanhamento, nem supervisão. Se houver reação, quem responde?”, questiona Cury.
Segundo o médico, a banalização das receitas atinge não apenas a classe médica, mas toda a sociedade. “Esse tipo de fraude mina a confiança nas instituições, enfraquece os sistemas de saúde e abre espaço para riscos reais — inclusive à vida”, diz.